O Grande Dormitório

Foram dois anos de trabalho, pesquisa e ensaios para a realização deste espetáculo. O título da peça se refere ao estado de consciência transitório entre as experiências apreendidas pelo nosso ser mais íntimo. Platão, em sua “República”, fala no capítulo décimo sobre a transmigração da alma, a jornada que se faz, de corpo em corpo, atravessando as barreiras do corpo físico e da materialidade, e neste processo, aprendendo a reconhecer a si mesmo, a reconhecer a essência divina das coisas. A peça se passa num intervalo, um momento/espaço onde os seres aguardam a transição de suas consciências entre o mundo físico e o mundo espiritual, uma alegoria sobre a vida, sobre o poder do ser humano frente ao caminho de autoconhecimento, a força do livre-arbítrio e a consumação dos frutos de nossas ações e palavras no caminho que conduz a sermos, livres de todo estado condicionado. As dificuldades desse processo são representadas em personagens com níveis de consciência e percepção muito diversos, apresentando a multiplicidade de estados a que os seres são expostos no caminho do aprendizado. Eivados por um desejo natural de luz, cada um passa por situações que acrescem mais peças aos quebra-cabeças da formação de uma consciência superior, uma super consciência que é unidade em si mesma, e unidade com o todo que a cerca. O interesse do Grupo por esse tema não é apenas de cunho religioso, e a peça não é um palanque doutrinário, mas sim uma ficção alegórica e interessada a respeito de nossa condição como ser consciente, capaz de intervir nos próprios atos e de criar sua própria realidade. Uma representação diáfana da sutileza e do poder do arbítrio pessoal. Esse tema, da abertura de nossa consciência frente ao nosso papel no mundo, é tema que sempre nos interessa.

Para a elaboração do texto e da encenação, foi necessário um longo período de estudo e de desenvolvimento de exercícios e práticas. Num primeiro momento houve um estudo aprofundado sobre como diversas vertentes religiosas e filosóficas enxergam os planos extra-físicos, e a existência de uma essência espiritual que continua a existir após a extinção do corpo físico. E neste processo verificou-se um interesse por conceitos e visões budistas tibetanas, pela riqueza imagética, pela fonte simbólica e pela pureza de trato. Fontes como o Cristianismo e o Espiritismo kardecista também foram estudados. Os autores do texto, André Garcia e Leopoldo Wolf passaram a estudar o “Bardo Thodol”, o livro tibetano dos mortos, e a freqüentar pujas, ciclos de orações no Centro Tibetano da Linhagem Kagyu, e André Garcia pôde conviver um tempo próximo ao Lama que à época conduzia os trabalhos, chamado Lama Pasang (que chegou a sair do templo e assistir, com muita alegria, a encenação da peça). Nesse tempo, frutificou-se um fluxo criativo que deu origem a dramaturgia da peça. Na ocasião, o presidente daquele centro autorizou a utilização de textos de seu venerável mestre, Kalu Rimpoche, no programa do espetáculo, falando sobre a transmigração da alma. Mas este não é um espetáculo budista, a despeito da grande influência deste conhecimento, mas sim um amálgama da possibilidade da existência de mundos sutis, e de um caminho pelo qual nossa essência maior aprende a ser, realmente, superior, no sentido de ter polido seus pensamentos, palavras e ações. Símbolos místicos foram muito estudados, como a Estrela de Salomão (a de cinco pontas), o círculo, símbolo de perfeição e completude, de integridade, de ciclo, o estudo da chamada geometria sagrada e numerologia, o conhecimento oculto nas formas e no número, tudo isso gerando elementos materiais para a construção tanto do texto quanto da encenação em si. E cada texto do Grupo tem essa característica: de ser escrito visualizando-se a encenação, visualizando sua capacidade dramatúrgica, que só se revela totalmente na cena, e não apenas na literatura.

Preparação

Os atores tiveram um imenso trabalho. Muitos laboratórios, tanto de práticas de exercícios físicos como de imersão em estados de espírito e conscienciais foram ativados e estudados. Para se dar a sensação de um local quase físico, mas ainda assim etéreo, cada ator passou por trabalhos que revelavam, através de uma delicada, intrincada e contínua movimentação, o clima desejado pela direção. Mesmo quando parados, havia um leve movimento de onda, ondulante, que levava seus corpos à frente e atrás. A movimentação em cena obedecia a princípios de coreografia, mas ultrapassava o conceito, pois a movimentação fluía de acordo com o fluxo do texto, e para além de se dançar uma marca, havia ali outro tipo de dança, revelando nos movimentos exteriores o complexo de sentimentos interiores. À despeito da movimentação cênica ter sido extremamente marcada e ensaiada, era fluida, natural, quase como se feita inconsciente, revelando o estado diáfano e etéreo daquele “local”.

A marcação de movimentação cênica foi toda construída, pensada, revelando a ascese da jornada de cada personagem rumo ao seu próprio merecimento, mostrando o que os diferenciava e o que os igualava.

Também os laboratórios emotivos e de imersão aconteceram, onde os atores eram expostos a diversos tipos de exercícios. Passaram horas experimentando uma claridade extrema, ou ausência total de iluminação e o desenvolvimento de recursos de movimentação nestes dois extremos(trabalhamos grande parte da montagem ensaiando na sala de ballet do Teatro Nacional Cláudio Santoro, que por ser completamente fechada nos dava essa possibilidade). Houve o desenvolvimento de exercícios de respiração e movimentos baseados em um tino interno, um fio condutor emotivo, associando estados catárticos a ritmos respiratórios. Viagens também foram feitas, a maioria a Alto Paraíso, lugar de cachoeiras e natureza, onde práticas de condicionamento físico (como trekking, escalada e natação) eram sobrepostos a investigação das sensações, e do desenvolvimento acurado da sensibilização dos sentidos, como a visão dentro e fora da água, de dia e de noite, o tato, com a experimentação de texturas naturais, de temperaturas, da ativação da pulsação cardíaca e da calmaria após esta, e também da descoberta mais profunda do próprio corpo, através da nudez (tratada em nuances físicas, mas também catárticas), da pesquisa de si. Ainda na construção do universo da peça, foram feitos muitos ensaios fotográficos, que não tinham a obrigação de obedecer a um padrão estético da encenação em palco, mas que antes serviam para dar mais elementos a cada ator( e aí sim obedecendo a um padrão estético maior, que englobava forma, sensação, pensamento), colocando à prova as porções entendidas de si como persona da peça em situações outras, no contato com os elementos físicos e também nas tentativas de afastamento destes mesmos campos sensoriais em termos de interpretação racional dos mesmos.

Personagens

Três personagens compunham o cerne visível. Cada uma em um nível de estado consciencial, aguardando seu próximo nascimento. As personagens não possuem nomes que as caracterizem, inclusive no texto sendo identificados por números: um, dois e três. O primeiro, o intermediário, está num dilema, preso entre dois conceitos, o da matéria e o da realidade do espírito. Ainda quer as benesses da encarnação, mas espreita um caminho superior, experimentando o conhecimento vivo da insustentabilidade fugaz de todo prazer, de toda conquista terrena. Ele está em meio a uma decisão importante: O que quer ser? Portanto sua movimentação é mais extensa, ostensiva, preenchendo todos os espaços na busca pela descoberta, pela necessidade de estar onde está, pela necessidade de se reconhecer como presente, como ente. Seus movimentos o alçam de um lado a outro, do alto a baixo, revivendo sensações e descobrindo outras, novas formas.

O segundo, o que está mais adiante no caminho, é mais observador e paciente, auxiliando a outros no que pode, em abertura de percepção da realidade a que estão submetidos, uma realidade além de qualquer fisicalidade como a conhecemos. Por isso mesmo seus movimentos são menos enfáticos, só acontecendo quando do uso de um saber que não desperdiça, mas se gasta apenas quando necessário. Seus movimentos são mais focalizados, indo em direção a uma luminosidade interna e externa. O terceiro, o mais difícil e irrequieto, passa por uma transição muito forte. No início da peça ele vislumbra o lugar de mudança de ciclo, mas ainda não pode adentrar o círculo de transmigração, pois está em coma, não morto. Ele vê o círculo, mas não pode acessá-lo, e ao longo da peça, quando de sua morte, ele o adentra e segue o rumo dos mais espalhafatosos e impacientes, dos que se entregam mais aos ímpetos. Seus movimentos são mais grosseiros, mais densos. Os três estão na mesma condição transmigratória, mas não na mesma condição de compreensão. Portanto a densidade e a velocidade e polidez com que se movimentam têm ligação direta com seus estados de consciência de si. Uma quarta personagem existe, o Tempo. Um ente, que atravessa o palco durante toda a peça, e que revela que por mais discreto, ele corre, e nos escapa, e nos favorece também, mesmo que não percebamos. O tempo em sua condição contínua e fluída, regendo os aprendizados e orquestrando as possibilidades. Essa personagem está toda de negro, o sexo não pode ser identificado, não é importante. Um capuz cobre a cabeça. E assim ela se desenvolve, precisamente, indo, de minuto em minuto, passo a passo rumo a concretização de si mesmo.

Cenários, figurinos, iluminação e Maquiagem

Os atores eram maquiados de branco, calças brancas, num símbolo de pureza intrínseca a natureza de cada ser, mesmo que erre, mesmo que ainda não consciente disto. Os cabelos, iguais, e as roupas e maquiagem iguais vieram dentro do conceito da equanimidade dos seres. Cabelos quase tosados, azuis ou violetas (dependendo da temporada), num símbolo de transmutação, da chama interior, ainda chama, mas em pacificação, em transformação. Cada cor veio acrescentando elementos importantes, pois que também simbólicas. Uma palheta de cores foi definida previamente, dependendo da simbologia de cada uma neste contexto, e todo o cenário e figurino foi construído a partir desta palheta, assim como todos os recursos de iluminação. O palco era comporto basicamente de um grande círculo de velas acesas, a representação mais pura da continuidade da vida, que iam, minuto a minuto, sendo apagas. A personagem do Tempo, toda de negro e deitada no chão, mal era vista no início da peça, mas era em algum ponto percebida, discretamente e se movendo a cada minuto. Ela o fazia sem o uso do relógio, visto que a atriz que fez este papel foi preparada para sentir o tempo do minuto e andar a cada um, sem ajuda de qualquer instrumento externo. O relógio era interno. As personagens um e dois eram ligados a bacias com água, um canal pelo qual iam e vinham à materialidade e de onde podiam ver o mundo físico. Ali nasciam e ali retornavam (no segundo ano de temporadas foi acrescido a isso um casulo de feltro branco, de onde emergiam). A terceira personagem possuía também sua bacia, mas só a acessava depois que se desliga do corpo físico. Antes disso está atado a uma pirâmide de madeira, que possui hastes e argolas por onde transita acima e abaixo, preso, só aparentando liberdade. Esta pirâmide é ligada a sua bacia por um caminho branco, unindo o exterior e o interior do círculo, e que ele trilha quando perde o corpo. No palco há uma caixa de madeira vazada, com porta. Chamamos esse objeto cênico de Caixa de Revelação. Pois que cada um a seu tempo, entra nela, vivendo no pós corpo o que acredita, vendo aquele local como pode/quer ver. A caixa é um instrumento mágico, que revela ao observador aquilo que ele pode ver, na medida de sua capacidade para isso. No fundo um painel de cinco metros de altura, revelando a dissolução do corpo em substâncias misteriosas. Painel pintado por Leopoldo Wolf especialmente para este trabalho. André Garcia e Leopoldo Wolf trabalharam em profunda parceria, construindo juntos o texto e a cenografia da peça, o que lhes valeu o Prêmio Nacional Funesc de cenografia. Ainda compondo o cenário, feito com luz e espelhos, encontra-se, num canto do palco, o caminho de saída do ciclo de mortes e nascimentos, o caminho para a iluminação, que só pode ser visto pela personagem de consciência mais elevada, apesar de estar ali para todos. Uma cachoeira de espelhos, brilhando, refletindo o caminho de Luz. O palco e a platéia eram ainda cobertos de pétalas de rosas frescas, inundando o campo sensorial da platéia, que ao adentrar a sala de espetáculos já era recebida com uma música introspectiva e o aroma das rosas, os atores já no palco, como se sempre estivessem estado ali, e assim o público era convidado a aquietar a boca e entrar numa viagem conjunta, a adentrar os portões entre o real e o ficcional. A iluminação, desenvolvida por Dalton Camargos, era composta de cores do ocre ao violeta, do azul ao vermelho e amarelo, atraindo o olhar para os estados emotivos de cada personagem. Gobos de efeitos e gelo seco completavam os efeitos de raios e de eterialidade. Depois da metade da temporada outra configuração ainda foi experimentada para a personagem numero três, que ao invés da pirâmide, descia do teto do teatro numa faixa de seda branca iluminada e brilhante, vindo até sua bacia descendo por argolas que o prendiam como uma marionete, mas mesmo assim o faziam aprender o caminho de volta. Cada coisa foi meticulosamente experimentada, em sala e em laboratório; e o ator que fazia a personagem número três precisou de princípios de ginástica e trabalhos em barra de apoio.

Brasil e Europa

O espetáculo teve grande repercussão, e isto também impulsionou as oficinas do Grupo, bem como a extensão de sua proposta de trabalho e exposição da peça em diversos estados, eventos e países.

No Brasil, o Grupo apresentou a peça em diversas temporadas, e em dois festivais nacionais de Teatro: O de Ponte Grossa e o de João Pessoa, fazendo a abertura de ambos. No ano 2000 o Grupo Domo embarcou para a Europa, onde passou quase um ano investigando a produção teatral naquele continente, e também apresentando pequenos trabalhos e esquetes (como trechos de “As Lavadeiras” em pleno Big Ben). No caso de “O Grande Dormitório”, os laboratórios criaram uma aura, um universo muito vasto de pesquisa e de encenação, e foram desenvolvidas cenas para serem assistidas e fotografadas, da elaborada movimentação e comunicabilidade silenciosa de suas personagens, que executamos nas ruas e cemitérios de diversos países, o que trouxe ainda mais força ao trabalho.

 

Exposição

Acompanhando todo o trajeto de criação da peça, o Grupo criou trabalhos plásticos que formavam uma exposição itinerante que acompanhava as viagens do Grupo, tendo também duas grandes mostras: No foyer da Sala Martins Pena do Teatro Nacional Cláudio Santoro (sala que o Grupo realizou a reinauguração, depois de grande reforma executada no teatro), e na galeria do então Teatro da Caixa. As obras, em sua maioria criadas pelo artista plástico Leopoldo Wolf, inspiraram os atores e faziam com que o público iniciasse sua jornada ao universo do espetáculo já na ante-sala da encenação propriamente dita. Também os rascunhos de cenários e figurinos eram expostos revelando um pouco do intrincado trabalho de construção de uma jornada teatral como esta.

 

 

Clipping

 

Imagens