O Julgamento

A ideia deste espetáculo vem dos primórdios do Grupo Domo. Quando André Garcia estava escrevendo os primeiros textos para o espetáculo “O Grito”, elaborou três pequenas cenas chamadas “O Julgamento”, inspiradas num artigo lido em um jornal, que tratava de comentário sobre alguma obra literária onde um juiz perverso sentenciava um réu a morte. Isso despertou uma reflexão muito profunda, em diversos níveis, desde nossos direitos estabelecidos, como cidadãos e entes sociais ao longo dos séculos (Vide a Carta dos Direitos do Homem, ou as Constituições de leis, em códigos antigos como o de Hamurabi, mas também na Constituição da República Federativa do Brasil, por exemplo), e também de um ponto de vista mais filosófico, onde livre-arbítrio, a conduta acima de regras temporais, o estabelecimento de princípios éticos ante um decadentismo das instituições se mostraram como temas tão atuais quanto convenientes (aos que querem avançar no pensamento sobre a condição humana, mas certamente inconveniente para quem prefere a manutenção do status quo de estados totalitários, mesmo que disfarçados de democráticos).

O intuito original não era político, no sentido mais direto, mais stricto sensu da palavra em sua aplicação partidarista e/ou institucional, mas num nível mais profundo, filosófico mesmo, porque as instituições e o estado são, em suma, formado por pessoas, que atendem a conceitos que idealizam e/ou que alimentam. No fim das contas, a questão central é essa: Nós mesmos, como membros e produtos desta civilização, como parte do mundo.

As três cenas curtas foram retiradas do texto de “O Grito”, e transformadas então no espetáculo “O Julgamento”, por ter seu autor percebido a profundidade e extensão do tema, que gerou uma motivação muito estimulante no Grupo. Levamos muitos anos para montá-la de fato, não por não querer, mas por entender a necessidade de maturação de nossa própria forma de encenação para atender a qualidade da peça. A peça foi quase toda escrita no ano de 1995/1996, e guardada na gaveta, passando por pequenas reformas ao longo dos anos, e chegando a sua versão definitiva, encenada pelo Grupo em 2009.

Composta de cinco cenas (prólogo, julgamento de três crimes e veredicto), a peça tem como argumento o modus operandi de um tribunal estatal totalitário no controle da suposta ordem social estabelecida, que a despeito de ser uma distopia alegórica e quase atemporal, trata diretamente de nossa estrutura social hodierna, e de nossa conduta íntima, aquela que tentamos atribuir a uma “tradição”, mas que são de fato nossas pequenas e/ou grandes vontades reveladas em ato. E cada pessoa com o tipo de ato que escolhe, com as conseqüências advindas disto, e com o alerta, sobre a importância de nossas decisões pessoais como seres pensantes e atuantes, e de que cada um, ator ou platéia, está inserido neste contexto.

O desenvolvimento do enredo dramatúrgico se dá no “Tribunal Popular” um tipo de picadeiro onde o público vem assistir a julgamentos de pessoas seqüestradas pelo Estado. O picadeiro é um tipo de circus máximus, onde todos vêm assistir ao dramático espetáculo promovido pelas lideranças ocultas; Uma mistura entre um jogo de xadrez e um jogo de bichinhos de pelúcia (são os assessores do Juiz…).

Exploramos a relação entre um juiz autoritário e um réu, considerado pelo estado como ativista político e social, e confrontamo-los no que diz respeito às suas liberdades civis, seu contato com a justiça, nos limites do poder sobre o cidadão e sobre como a sociedade em que vivemos sofre pelos paradigmas criados por ela própria para controlar o ímpeto humano. As relações entre bem e mal, ordem e justiça, conceitos e pré-conceitos são expostas em “O Julgamento” como um tribunal-picadeiro, que avalia e execra quem discorda de suas posturas, construídas pelo Estado e pela Lei, que se coloca perfeita para quem não o é. O circo da vida real num mundo de fantasia.

Entre drama e humor, as mazelas de conceitos pré-concebidos vão sendo exibidas, e dando lugar a uma reflexão mais severa sobre como admitimos, inconscientemente, certos valores. E também, quanto nossa sociedade tem ainda que caminhar para superar sua adolescência evolutiva, para nos tornarmos mais afins com o nome que recebemos: Humanos. Vemos, na peça, que alguns conceitos medievais, período considerado obscuro, ainda vigoram e povoam nossa vida diária.

Sete personagens, o Réu, o Juiz, sua Assistente, o Guarda e as Testemunhas, encenados por apenas quatro atores, com o auxílio de um contra-regra/ator, dão conta da encenação propriamente dita.

Em termos de cena, a peça é aberta com um Prólogo, que deixa clara a posição de cada um ao longo da tragicomédia que virá: O juiz em seu papel de acusador e redentor das vítimas, os funcionários da repartição, marionetes raivosas de uma engrenagem massificante, e o Réu, o reflexo de uma ética que está em formação, mas ainda assim ética, que pode até ser encoberta por sete palmos de terra, mas que sempre existirá. Todos humanos, todos no mesmo jogo, todos na mesma condição terrenal, a despeito de desfechos diversos. Aqui o Juiz fala aos seus, mas fala também diretamente a platéia, rompendo a quarta parede (que se restabelece quando necessário), envolvendo a todos na movimentação da máquina industrial do direito estatal.

Em seguida vêm os crimes, o julgamento deles propriamente dito. Sorteados pela platéia (mas sempre na ordem que determinamos) vêm em seqüência os temas do Assalto, onde o Réu é acusado de roubar mentalmente as jóias do pensamento ocidental e transformá-las em armas anti-manutenção da calma e ordem das massas, a Propaganda Enganosa, onde o Réu é acusado de prometer um mundo utópico e fictício de bem aventurança que não pode e não deve se materializar, um bem prometido que ele não tem como entregar, e por fim a Heresia, no qual o Réu é confrontado com suas crenças mais profundas na fogueira da Inquisição ideológica do Estado.

Assim, depois desta jornada, vem o Veredicto, que sentencia o Réu de forma a não deixar dúvidas de que a realidade da distorção do poder existe, mas que em contrapartida não se poderá calar a Verdade nunca.

Cenários e Figurinos

O Figurino foi criado à partir de uma mescla de elementos de épocas diversas, com símbolos que remetem a condição de cada íntimo, de cada papel das personagens no drama desenvolvido. O Juiz possui coturnos e casaco com insígnias militares, um uniforme, mas que nem por isso deixa de lado o tom de realeza desse poder naquela sociedade, pois que feito do mais puro veludo cromo alemão, mangas de renda importada, botões com brasão, gola elisabetana, peruca de cachos brancos. O preto, o branco e o dourado são as cores mestras desta composição de estilos. O guarda segue o padrão militar, mas com elementos não tão nobres, nem tão rigorosamente sóbrios no acabamento e na cor. O pobre guarda tenta ser como ele, o grande Juiz, mas ainda não o alcança, nem mesmo na graça pensada de seus movimentos.

O Réu vem com uma camisola, aquela dos hospícios do século XVIII, com longas mangas amarráveis. No peito a marca de nosso tempo: Um imenso código de barras que definem quem ele é, sem a necessidade de um nome para designá-lo, além daquilo que ele é, um réu. Por baixo, um macacão, com o mesmo código, que é mostrado quando este aprende a se comportar melhor, demonstrando que não vai morder os funcionários. Na boca, um arreio de bestas impacientes e agressivas, um freio de cavalos, que, se preciso, são puxados. Nos olhos, máscara, vendando a visão, enxotando aquela consciência ao mundo do temor, do não saber o que está havendo. Conforme a peça se desenvolve, a máscara e o arreio são retirados, para que ele possa fazer sua defesa, inútil cena, pois que o desfecho geral já o ronda desde a primeira palavra dita. A Assistente, com ar de coquete de luxo, anda em saltos vermelhos e meia arrastão, num corpete de veludo roxo e cartola acompanhando, que confunde e ilude os desavisados de sua posição subserviente, com um glamour garimpado nas melhores imagens de apresentadoras de espetáculos de um Moulin Rouge imaginário. As testemunhas, cada uma com seu padrão de cor e textura, dão um colorido à multiplicidade de atuação do tribunal. Uma bibliotecária idosa, com sua longa saia marrom drapeada, sua blusinha de seda branca com bordados de borboletas, seu imenso óculos para horas infindas de leitura e consulta. Uma secretária neurastênica e desequilibrada, com seu chapéu de plumas de luto, seu vestido amarelo a La Brigitte Bardot, sua bolsa repleta de cigarros, de pó compacto e chicletes. A Freira, que desliza pelo palco com patins invisíveis, usa uma túnica que esconde seu conteúdo, mas revela na aparência a sordidez das intenções. Seu Chapéu, branco e antigo, ostenta a suposta autoridade de um poder sacerdotal perdido, e por isso mesmo, cômico em sua flacidez simbólica. No dorso, o bordado da cruz e da coroa, requerendo a ascensão das instituições religiosas sobre qualquer outro poder. Ainda na composição estética da peça, todas as personagens ligadas diretamente ao Estado usam máscaras, símbolo do poder oculto, da impossibilidade de se revelar o que de fato vai por trás das aparências imperialistas. As outras personagens não a usam, porque não são partícipes das lideranças que manobram, mas massas móveis nas mãos destas lideranças. As mulheres, todas com perucas, procurando dar forma particular aquilo que na verdade não consegue se diferir. Os homens, por regra do Estado, têm cabelos tosados à moda militar, sejam réus, sejam juízes, afinal, por trás deles, também tem alguém que decide tudo isto, alguém ainda mais oculto, alguém ainda mais enterrado nas engrenagens que governam a política. Com estes, o Juiz conversa por um telefone vermelho.

Os cenários e objetos de cena englobam essa visão lúdica das partes dissonantes que compões o todo, o universo das personagens, cada uma contribuindo com um aspecto. De um lado, o Juiz e seus acessórios, sua escrivaninha pequena, deixando-o desconfortavelmente grande em relação a qualquer objeto. Sobre a mesa, o telefone vermelho mencionado, sua caneta/pluma dourada, seus instrumentos de trabalho, carimbos diversos, e o processo de milhares de páginas. Seus charutos, brinquedos e livros. Os réus possuem um lugar próprio, uma piscina de bolinhas, embaixo de um móbile de sórdidos e distorcidos bichinhos. Esses objetos pseudo infantis, essa infantilização obscura, revela uma aura de tentativa de inocência, um acobertamento do lôdo espúrio de uma moral altamente questionável, e de uma imposição da imagem do estado como o grande adulto que conhece seu meio e o rege, frente a criança que precisa ser corrigida por seus atos falhos. Ao fundo, um painel de personagens bizarras apresentando a entrada das testemunhas (pintado por Leopoldo Wolf, que elaborou toda a cenografia juntamente com André Garcia), e uma cadeira a espera delas, rodeadas pelos inocentes espectadores de pelúcia. O Juiz ainda possui, para momentos de maior descontração, um trono, um urso rosa que serve de assento a própria barriga, e que assiste sorridente e impassível ao desenrolar dos acontecimentos.

Preparação

O caráter argumentativo e o texto denso, em que muitas frases dão sentido a várias interpretações, exigiram dos atores um longo período de estudo de leitura dramática, na busca de uma compreensão mais profunda sobre cada palavra e intenção superficial e oculta do texto.

Além disso, aulas de preparação física e vocal, contanto ainda com exercícios de sensibilização para uma imersão mais profunda na atmosfera surreal da peça. Especial atenção aos papéis femininos, que em cada temporada são representados por uma única atriz. André Garcia e Leudo Lima, que protagonizam e produzem o espetáculo, passaram por anos de leitura e refinamento do entendimento da cena desta peça, e revelam no palco o resultado de seus esforços.

Clipping

 

Imagens