Postado em Pesquisa Teatral

Leudo Lima – Primeiras Impressões

Eu conheci o André – diretor do Grupo Domo – no ano de 2003, quando coincidiu de cursarmos o Bacharelado na Universidade de Brasília. Nesse período, o Grupo já tinha quase 10 anos de uma trajetória frutífera e promissora, com 04 espetáculos montados e premiações em festivais nacionais, além de uma proposta artística bem definida. Ainda assim, sofria das mesmas dificuldades de qualquer coletivo artístico para manter um trabalho continuado, como a dificuldade de financiamento de sua pesquisa e de suas produções, além da dificuldade de manter um núcleo coeso (muitas vezes uma coisa está ligada à outra).

Diversas afinidades éticas e estéticas relacionadas ao teatro e às artes levaram à minha rápida aproximação do trabalho do Grupo, tornando esses 11 anos de colaboração bastante profícuos para mim, dos pontos de vista artístico e profissional. Também me engajei pessoalmente na área de produção, por reconhecer que, para a consolidação e a manutenção do trabalho artístico do Grupo, é indispensável uma base logística que permita a captação de recursos e execução eficiente dos nossos projetos.

Nesses anos recentes, o Grupo tem alcançado importantes conquistas (ainda que modestas) que vêm contribuindo para a consolidação do nosso trabalho. Entre essas conquistas, uma sede própria, um núcleo de pessoas afins­, além da possibilidade de levar a cabo um aprofundamento em nossas pesquisas, que refletem diretamente em nossos espetáculos e demais trabalhos.

Assim, esse projeto de manutenção e pesquisa do Grupo, patrocinado pelo FAC/SeCult/GDF, vem numa hora auspiciosa, em que podemos parar para avaliar aquilo que já produzimos em termos de arte e conhecimento, ampliar nossos horizontes e traçar os caminhos para os próximos anos. Para isso, nos propusemos a resgatar, registrar e compilar alguns dos caminhos técnicos já percorridos pelo Grupo para preparação de ator e composição de cena, além de dar continuidade à formação e ao treinamento dos atuais integrantes.

O Programa de trabalho foi concebido em seis etapas que refletem nossa proposta artística, envolvendo desde o estudo teórico do teatro e das artes de forma geral, até a pesquisa prática de trabalho vocal e corporal, laboratórios emotivos e abstração criativa.

 

A Proposta Artística do Grupo Domo

O Grupo Domo tem uma proposta artística simples, mas ao mesmo tempo rica e instigante, que parte de uma visão do teatro como comunicação direta e viva entre seres humanos. Essa proposta baseia-se em três premissas principais, que acreditamos suprir nossas mais prementes necessidades estéticas, éticas e técnicas:

1 – O estudo, a investigação e a experimentação sobre o teatro e as artes, de forma geral;

2 – A busca por um teatro autoral; e

3 – A prática de um teatro reflexivo.

Assim, em primeiro lugar, nos propomos a conhecer e investigar o teatro em si e seu contexto. Se nos propomos a comunicar através do teatro, precisamos conhecer os elementos significantes de nossa linguagem. Para isso, procuramos, dentro das nossas possibilidades, estudar, decupar e experimentar o próprio fenômeno teatral, seus aspectos técnicos e expressivos, formais e formativos, suas origens e evoluções, a sua relevância histórica, social, cultural, artística, espiritual, etc. Também buscamos ampliar a nossa visão sobre teatro, principalmente através do estudo da arte de forma geral, a fim de compreender o que é artístico no teatro e o que é teatral na arte. Vale notar, no entanto, que essa investigação é contínua e não se estanca, uma vez que aquilo que podemos aprender sobre o teatro não está restrito aos livros e academias. A fonte mais vasta deste conhecimento é a experiência viva, matizada principalmente em nós, os artistas, cada vez que revivemos essa tradição milenar.

E para que aprendemos a falar? Para construir palavras e comunicar sentidos, é claro. Mas quem é o sujeito falante? O que dizer? Para quem dizer? A partir dessas perguntas, imergimos na segunda etapa de nossa investigação.

Fazemos de antemão uma opção clara pela autoralidade, que inicialmente se realiza pela produção de textos inéditos, escritos por integrantes do próprio Grupo. No entanto, para nós, um teatro autoral não se restringe a uma dramaturgia própria. O teatro autoral está relacionado principalmente a uma apropriação do discurso, por parte de cada um dos artistas. Acreditamos que para uma comunicação viva na cena, o sujeito falante deve ser o próprio ator ou intérprete, em tempo presente, empoderado do discurso estético e ético do espetáculo. O teatro autoral ainda confere atualidade e vitalidade ao nosso discurso, possibilitando dialogarmos com o nosso tempo e contexto.

Afim de não cair na auto-referência artística, muito recorrente na arte e no teatro contemporâneos, buscamos transcender a nós mesmos em nosso discurso, dialogando e refletindo a nossa condição, não apenas a histórica, social e cultural, mas principalmente a humana.

Não queremos fazer um teatro que sirva apenas para suprir o consumo de uma burguesia privilegiada e acomodada, que gosta de sair dos espetáculos se sentindo confortável, ainda mais diferenciada e inteligente ­– por ter visto a peça daquele grande dramaturgo, diretor ou ator, ou com a temática e a estética da moda – e que depois sai para comer a rotineira pizza com os amigos. Nós buscamos antes a comunhão e a partilha, vendo o espetáculo como um meio, não um fim em si mesmo. Buscamos não apenas falar, mas também ouvir, tocar e também sermos tocados… E se temos algo a dizer, que seja algo significativo, que atinja as necessidades tanto dos seres humanos artistas, quanto dos seres humanos plateia, em nossa condição comum, seja ela espiritual, simbólica, estética, política, etc. Só assim, acreditamos, a conversa realmente se torna interessante.

Essas três premissas apresentadas conjuminam-se dentro de uma concepção de teatro de grupo, que soma os conhecimentos, as vivências, o trabalho e o entusiasmo de cada um de seus componentes, possibilitando uma pesquisa continuada, a manutenção e a multiplicação do conhecimento adquirido.

 

Primeiro Bimestre do Projeto de Pesquisa e Manutenção do Grupo Domo

Na primeira etapa deste processo de pesquisa, partimos para o estudo de algumas referências teóricas e conceituais sobre o teatro e as artes de forma geral. O objetivo dessa etapa foi ampliar nossos conhecimentos e perspectivas sobre o fazer teatral, possibilitando o pensamento crítico e a percepção sensível sobre as artes e, principalmente, sobre nossa própria produção artística.

Antes de qualquer coisa, no entanto, voltamos às origens do teatro (por enquanto, mais o ocidental como referência principal), remontando principalmente a sua raiz ritualística e sagrada. A partir disso, realizamos leituras e discussões sobre história da arte e do teatro – como “A História da Arte”, do Ernst Gombrich, “História Mundial do Teatro”, de Margot Berthold e “Diálogos sobre Teatro”, de Jacó Guinsburg –, passando por algumas referências teóricas – como “A República” (Livro X), de Platão, “A Construção da Personagem”, de Constantin Stanislavski, e “Para um Teatro Pobre”, de Jerzy Grotowski. Também ampliamos o leque de referências, a partir da perspectiva de alguns importantes artistas de nosso tempo ­– como Clarice Lispector, Zé Celso Martinez Corrêa, Fernanda Montenegro e Pina Bausch, entre outros ­–, através de vídeos de entrevistas e documentários, flertando ainda com outros campos como o cinema, a dança e a música. Além disso, ainda abrimos espaço para temas gerais, que consideramos relevantes, através, por exemplo, do documentário “Home”, de Yann Arthus-Bertrand.

Como se pode notar, essa primeira etapa foi bastante produtiva e enriquecedora. Artistas tendo a oportunidade de se reunir sistematicamente apenas para estudar e discutir a própria criação artística, visando o desenvolvimento de um trabalho conjunto, é uma oportunidade rara e um verdadeiro luxo, quando levamos em conta o panorama das artes no Brasil. Nesse sentido, acredito que o aspecto mais significativo dessa etapa foi justamente a reunião das pessoas, das ideias e visões. Os vários debates surgidos, fomentados pelos textos e temas propostos, propiciaram a expansão dos nossos horizontes artísticos. Vendo também a partir do olhar dos outros, pudemos vislumbrar possibilidades criativas e também traçar caminhos comuns a serem percorridos. Essa é uma das belezas e forças do teatro de grupo que procuramos valorizar.

Pessoalmente, gostaria de destacar alguns dos momentos marcantes nessa etapa. O primeiro deles foi o estudo sobre Grotowski, feito principalmente a partir dos livros “Para um Teatro Pobre”, dele mesmo, e “Avec Grotowski”, de Peter Brook. Nós do Grupo Domo, assim como muitos outros coletivos teatrais que se propõem à pesquisa e à experimentação, somos bastante influenciados pela visão de Grotowski e seu Teatro Laboratório. Essa influência é o motor deste projeto de manutenção e pesquisa, por exemplo, onde estamos buscamos abrir espaços para outros tipos de reflexão e exercício criativo, além do ciclo “natural” e profissional de teatro, restrito a ensaios e produção de espetáculos.

Além disso, apesar de não seguirmos uma estética grotowskiana (o que era desestimulado por ele mesmo), também buscamos valorizar aquilo que, segundo Grotowski (em “Para um Teatro Pobre”), é único e essencial no teatro, isto é, “a relação da percepção direta, da comunhão ao vivo entre espectador e ator”. Esse espaço de re-união, que pode ser proporcionado pelo teatro, parece cada vez mais necessário nos dias de hoje, em que a mentalidade do individualismo e da autonomia é tão exaltada, apesar das interações entre as pessoas serem cada vez mais instantâneas (e virtuais).

Outro momento que considero marcante nessa primeira etapa do nosso projeto foi o debate relacionado à arte contemporânea, instigada pela palestra “Arte contemporánea: el dogma incuestionable”, da crítica de arte Avelina Lésper, realizada na Escuela Nacional de Pintura, Escultura y Grabado (Enpeg) La Esmeralda, na Cidade do México. Levando em conta a própria evolução histórica do conceito de arte, buscar uma definição precisa do termo é entrar num terreno movediço, que pode pender tanto para formas pré-definidas e conceitos estritos, quanto para o relativismo que considera que todos são artistas e que tudo pode ser arte. Avelina Lésper reage mais a este último, mostrando que a legitimação de qualquer coisa como alguma coisa artística esvazia o sentido da arte em si, questionando ainda os ciclos viciosos envolvidos nesse processo de legitimação. A partir dessa perspectiva, se etimologicamente o termo latino “ars” – que se relaciona com o grego “techné” – designa a habilidade ou capacidade de produzir algo, a arte contemporânea se afastou a tal ponto dessa acepção original que não é mais necessário ter habilidade e nem mesmo produzir algo, desde que haja o respaldo de um conceito, um contexto ou uma autoridade.

Essa discussão nos coloca também em “xeque”, enquanto artistas, uma vez que somos chamados a pensar sobre as nossas premissas individuais sobre a arte, seu papel e o contexto da produção artística. Assim, acredito que muitas das questões apontadas por Avelina Lésper também podem ser observadas na produção teatral da atualidade, principalmente  quando vemos trabalhos que se baseiam em discursos altamente elaborados (o que garante ótimos releases), mas que são muitas vezes vazios de sentido, sendo motivados menos pela necessidade artística do que pela oportunidade de atender às demandas de mercado e dos editais. Quando se consegue transpor o discurso para a cena (o que nem sempre acontece), os produtos artísticos são auto-referenciados, comprometidos antes em se encaixarem nas concepções em voga daquilo que é contemporâneo, revolucionário, pós-moderno, pós-dramático, visceral, chocante, etc. Enfim, o produto artístico é direcionado a um contexto, a um seleto grupo – composto principalmente por outros artistas, teóricos, críticos e curadores de festivais –, uma suposta elite cultural, que garantirá a validação artística dessas obras e a visibilidade dessas produções. O objetivo da produção artística parecer ser garantir as produções futuras e a consagração de quem produz. Enquanto isso, o artista e sua obra se mantêm em uma redoma de vidro, alienados daquela comunhão da qual nos falou Grotowski.

Como já foi dito, a arte, em sua acepção original, refere-se a uma habilidade, ou uma “capacidade raciocinada de produzir” (Aristóteles, em “Ética a Nicómaco”). Essa definição, no entanto, parece se manter restrita aos aspectos técnicos (“techné”), referindo-se principalmente aos meios da produção artística. Mas de que matéria se constitui a arte? Qual a sua natureza?

Longe de querer esgotar as possibilidades dessas perguntas, mas por considerar que essa natureza não é conceitual, gostaria ainda de citar como marcantes os vídeos que assistimos da companhia de butoh Sankai Juku, fundada pelo coreógrafo Ushio Amagatsu. Para mim, o espetáculo “Tobari” traz aquele aspecto da arte que é intangível ao pensamento analítico, pois a linguagem imperante é a poética, tocando diretamente o corpo sensível do espectador. Posso falar do espetáculo do ponto vista técnico, apontando como as estrelas que se projetam do chão, circunscritas na plataforma oval, dão a noção de um espaço infinito; ou posso falar do virtuosismo técnico dos atores, da movimentação precisa e orgânica que dilata nossa percepção do tempo. Contudo, os sentimentos de infinitude e de atemporalidade, vislumbres do fluxo incessante da existência, não estão na forma ou nos artifícios técnicos utilizados na cena, eles transcendem a obra de arte, reverberando no corpo e na alma de quem vê. Assim, a arte torna-se holística, no sentido aristotélico, isto é, o todo é maior do que a simples soma de suas partes.

Ainda me pergunto, como realmente se dá a preparação do artista nesse aspecto intangível da arte, feito de matéria poética, como diria Heidegger. Será possível essa preparação? Bom, a nossa jornada neste projeto de pesquisa está apenas começando e muita coisa ainda estar por vir.

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