Dos Anjos e de Todos Nós

Esta peça foi concretizada no âmbito da Universidade de Brasília, visto que foi o resultado do curso de Graduação em Artes Cênicas de André Garcia e de Helio Sales. Mas o projeto de montagem já vinha de longa data, e como os dois atores também eram membros do Grupo, utilizaram-se do conhecimento do mesmo, e do apoio de Luisa Melo (doutora em literatura), para criar esta obra. Foi um trabalho realizado pelo Grupo, no sentido de que as pessoas envolvidas na montagem tinham ligação com ele, assim como a idéia e a maturação do trabalho ocorreu entre atores e técnicos do mesmo. André Garcia e Hélio Sales tinham interesse na vida e obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos, e há tempos isto fomentava a vontade de realizar um trabalho que envolvesse sua poesia, mas não como recital declamativo, como obra de um orador, mas como dramaturgia. Um espetáculo que mantivesse a proporção magistral de sua poesia, mas apresentando isto num quadro de encenação. André Garcia já havia feito, alguns anos antes, laboratórios e apresentação de uma performance sobre a obra deste autor no prédio do Instituto de Artes, e que serviu de fomento inicial para se levar adiante um projeto maior, de um espetáculo inteiro e bem acabado.

André e Hélio criaram então um modo de levar a cabo suas idéias, construindo um texto que comportasse o diálogo e a poesia. Isto foi feito com um roteiro que mesclava a vida de dois estudantes que liam a obra de Augusto e se preparavam para montar uma peça, com as poesias (escolhidas na obra completa do autor), e recortes de entrevistas e documentos. As cenas se sobrepunham intercalando estes três tipos de cena.

Na primeira cena os dois atores estão na sala de seu apartamento, conversando sobre suas vidas e de repente surge a força da poesia de Augusto para os dois. Quando começam a lê-la, o palco se transforma num campo imaginário, numa arena onde o sentido mais mágico das poesias tomam lugar em cena. Á partir daí, um fluxo de poesias é entrecortado pelo retorno ao mundo real, os dois no apartamento, e também por cenas onde cada ator se passa pelo autor (encenando um importante inquérito respondido por Augusto), e cada ator conta como conheceu a obra de Augusto dos Anjos, como se encantou por ela, e ainda com momentos de leitura de entrevistas e documentos sobre ele.

Um entrelaçamento de componentes que iam revelando o mundo do autor, e ao mesmo tempo o mundo dos dois atores que tanto o admiram.

As poesias foram separadas em blocos, cada um falando sobre temas específicos (como o Amor, ou o Divino), e que foram nomeados de forma simbólica e poética por cada ator da peça. Ambos leram a obra completa de Augusto, e chegaram a um consenso em relação as poesias que mais lhes interessavam, e assim as separaram por assunto. E na peça cada assunto vinha se sobrepondo a outros, criando uma linha dramatúrgica na peça, alterando climas, revelando facetas da alma de Augusto dos Anjos. Do infernal ao sublime, do grotesco ao belo, do científico ao metafísico. Tudo isto está bem descrito na pesquisa feita pelos atores, e que no caso de André Garcia resultou em uma monografia intitulada “O Belo e o Feio: Reflexões sobre Dos Anjos e de Todos Nós”. Um trabalho sobre o estudo da estética e a dramatização de poesia em cena.

O título da peça é uma referência direta ao nome do autor, mas também revelando essa dubiedade, de que sua poesia sublime está além, no campo das liras divinas, mas também pertence a nós, humanos, que somos todos nós expostos a vida do homem, que gera a beleza dessa poesia.

Cenários, Luz e Som

Os cenários foram concebidos por André Garcia. A platéia era composta por plataformas em degrau, disposta em semicírculo, dando essa forma de teatro grego, aqueles das encostas e montanhas. Do fundo do palco descia um tecido branco, que invadia o piso e cobria o espaço inteiro de encenação, o branco como sinal de pureza, vindo do alto, de onde a pureza reminiscente emana. Um rio vindo do céu, e tocando a terra. Num canto, os sofás, a mesa, o apartamento comum, onde os dois amigos estão a elucubrar sua vida, seu passado e futuro. No restante, areias brancas tomam o tecido, revelando uma paisagem branca, pronta a ser preenchida com a cor e o tom de cada universo imaginado por Augusto dos Anjos. Do teto também descia, na primeira poesia, um imenso móbile de espelhos e pedras transparentes, que iniciavam a entrada daqueles atores no mundo mágico do além, no mundo da poesia, como um portal que se abre nos recônditos de nossa consciência para ver aquilo que o artista via. E o teto inteiro do teatro foi traçado com cruzamentos de linhas negras, de onde pendiam estrelas e mais estrelas, cujo brilho tanto fascinou Augusto, e certamente fascina a nós, numa alegoria da imensidão dos espaços, e da pequenez do homem, mas que ainda assim, contém dentro de si a visão das imensidões. As estrelas brilhavam no escuro, e mudavam de cor de acordo com a iluminação, que era cheia de climas e cores. Além disso, cadeiras eram colocadas para o público dentro do espaço de encenação, provocando a imersão de todos no universo imaginário, ficando atores e platéia misturados, muito próximos, aquecidos um pelo outro, numa proposta grotowskiana, mesmo artaudiana de encenar. Objetos especiais de cena também foram criados, como caixas de madeira que faziam às vezes de sapatos gigantes, cheias de cimento, onde o ator calçava as botas e criava um ponto de apoio para uma movimentação mais radical em termos de inclinação e equilíbrio.

Uma luz branca era usada quando os atores estavam improvisando diretamente com o público, contando suas experiências reais de contato com a poesia. As Luzes coloridas, oblíquas ou difusas eram usadas para os momentos mágicos de poesia (Como a parede de fundo, que coberta com o imenso tecido branco, tinha iluminação por trás, deixando o ambiente entre penumbras). Havia um imenso refletor superior, que era usado nos momentos de inquérito e de leitura de documentos, e uma luz fria e quadrada, que limitava os espaços de encenação do apartamento, que mesmo delimitando, ressaltava o tamanho das imensidões, com as estrelas brilhando ao lado de fora. O público também compunha parte da iluminação, com velas que eram distribuídas em certo momento da peça, participando ativamente.

Aqui o Grupo também teve uma profunda pesquisa a respeito da criação de espaços e climas sonoros, compondo e executando, com o auxílio de músicos, uma trilha tocada ao vivo. Os músicos eram dispostos entre as arquibancadas e ao fundo da cena. E geravam um ambiente sonoro, que produzia música, mas também inserções melodiosas, efeitos sonoros, acentuando cada mudança de clima e de tensão da peça. Para tanto, para aprofundar a sensação de magia e encantamento, foram usados instrumentos não muito comuns, como didgiridoos australianos, sinos tibetanos, carrilhões, ocarinas, kalimbas, maracás e outros.

Os figurinos

Simples, tanto quanto possível. Calças jeans verdes e camisas brancas. Num determinado momento também, casacos pretos com estrelas, as mesmas dos céus da peça, bordadas, deixando entrever no peito dos atores a mesma matéria que compõe o cosmo. O figurino vem apenas para deixar a cena limpa, abrindo espaço para se focalizar no corpo liso, na voz pura, na musicalidade e fisicalidade de cada ator.

Imagens