Postado em Pesquisa Teatral

Manutenção do Grupo Domo: Considerações sobre o Fazer teatral

Creio que uma coisa peculiar e magnífica de nossa profissão seja a efemeridade. Quem viu o teatro sendo feito ao vivo viu algo único, que jamais se repetirá. E nem mesmo uma filmagem poderá revelar o que foi aquele evento. Para se chegar a esse momento sublime de diálogo e de comunhão, acredito que é preciso muito estudo e muita prática. Muito questionamento e muita força de vontade, porque não é fácil, como os bons atores conseguem fazer parecer. A despeito desta efemeridade, registros de trabalhos e métodos nos auxiliam na compreensão da vastidão do trabalho do ator.

Outra coisa de sumária importância para a elaboração de um projeto de pesquisa como esse, é a rememoração do aspecto sensível e das premissas de nossa profissão. O que quero dizer com isso? O teatro, como muitos hoje o tomam por entretenimento (o que, sem preconceitos, ele pode ser), uma espécie de primo estranho da televisão ou do cinema, para nós está um tanto afastado de suas origens. Muitos que se encaminham para o trabalho de ator se esquecem de que estão pedindo para ser mais um elo na longa corrente de mais de dois mil e quinhentos anos de teatro ocidental, e não se apercebem da profundidade disto. Ficam satisfeitos com os artifícios que giram em torno do teatro: mais amigos (incluindo os falsos), uma posição, um métier, mais sexo, terapia, bilheterias e aplausos. Tomam o teatro como palco não para personagens desenvolvidas com muito apuro, mas para si mesmos.

Desenvolvem montagens rápidas onde o conceito é uma coisa e o trabalho outra, porque se desenvolvem bem na arte de falar sobre o que fazem, enquanto que o trabalho prático mesmo parece ser apenas um mero meio secundário para se chegar a um “resultado” satisfatório no grande “mercado” de arte atual (oh, questões de arte pós moderna…).

Não estou aqui querendo bancar o tradicionalista ranzinza, inventando cânones para o fazer teatral, cânones impossíveis porque estáticos, coisa que o teatro não deveria ser. Vejo pessoas que se acham muito vanguardistas sendo muito tradicionalistas com os trabalhos de outrem, e temos que lembrar também que o artista é livre para se apropriar, e modificar, transformar, para traduzir sua visão única de mundo. Também não ouso afirmar, e se o fizesse seria muito naif, que devemos voltar à raiz grega ipsis literis, porque isso também é impossível. O modo como viam o teatro, e a função que ele possuía, naquela época para aquele povo, jamais poderemos reproduzir.

Mas temos visto muitos trabalhos de teatro “profissional”.  Artistas “profissionais”. Tanto no sentido mercadológico, como nas aparências. Nesse sentido, um grande numero de pessoas andam acorrendo a profissões ligadas as artes porque o “mercado” têm melhorado. Produzem “peças – produtos” a toque de caixa e emendam dois, três, dez trabalhos, porque afinal de contas é preciso sobreviver. Uma verdadeira indústria de patrocínios em troca de imagens institucionais impecáveis tem de fato gerado, para o bem (e às vezes não), a oportunidade das pessoas continuarem a trabalhar. Andamos vendo pessoas muito tecnicistas se auto-intitulando artista porque conseguem se bancar, e inúmeros “artistas” assim não são raros de se ver, e esses ainda mais que outros procuram fazer seu marketing pessoal, deixando clara a sua competência de gestão. Mas estarão mesmo criando arte, no sentido de se envolverem pessoalmente, de utilizarem sua obra como veículo de comunicação, e não apenas da auto-exposição? Estarão buscando um diálogo (o que no fim das contas toda obra artística suscita), com os outros, com seu meio, seu mundo, com as idéias, com a história, consigo?

Para nós, artistas do Domo não cairmos nestas armadilhas, procuramos a reflexão sobre o que fazemos, como fazemos e o que queremos de nossa arte, sabendo que não há imparcialidade absoluta, e também que há espaço para outras formas de pensar alem da nossa. Não estamos fazendo absolutamente nada de novo. Estamos apenas revivendo passos dados por outros, e redescobrindo em nós os motivos disso, procurando nos manter sãos em nossa caminhada. Podemos pensar e registrar nosso modus vivendi e operandi como Grupo, e isso neste momento nos importa muito. Por isso quisemos voltar a certas raízes, das coisas básicas e das experimentações. Coisas que a gente acha que sabe, e mesmo que saibamos, é bom revisitar, e agora registrar para o compartilhamento com vocês.

Muitos já discorreram sobre linguagens e métodos, sobre premissas e talentos. Então por que estudar e registrar nossa jornada? Para mim é como o amor: toda nova geração quer vivê-lo, e por mais antigo, é sempre novo. Assim são os temas teatrais. Poderíamos resumir talvez os principais temas ao que? Cinco ou seis assuntos essenciais? Todos humanos, todos do ser em descoberta de si.

Resolvemos viver esse processo de sensibilização. De re encantamento. Como acreditamos nas fontes míticas e ritualísticas dessa arte tão nobre e tão difícil, de tamanha doação pessoal, queríamos estudar mais dos estados prévios, antes de decorebas de texto, de intenções de montagem, de logística de produção ou gestão de projetos. Queremos mais uma vez nos perguntar (mesmo sem esperar respostas lacônicas e certeiras): Do que é feito mesmo o trabalho do ator? Onde surge? Como se domina? Por que existe, afinal? Para responder isso repassaremos nossos conhecimentos em termos de história e idéias, de práticas corporais e de laboratórios diversos.

Por isso mesmo resolvi iniciar este projeto reintroduzindo os atores do Domo numa jornada de estudos teóricos e visuais. Nos primeiros dois meses dessa manutenção temos estudado algumas coisas selecionadas que acredito possam despertar nos atores o fomento do querer saber e experimentar. Nesta primeira etapa separei textos ligados ao teatro e as artes em geral, que considero apontar bases importantes para sedimentar uma experimentação mais profunda, uma abertura para se revisitar nosso próprio entendimento do que fazemos e do que queremos fazer adiante. Também documentários, filmes e músicas entram nesta etapa, para alargar a visão, no contato com movimentos, ondas de expressão, com virtuoses e com acertos e desacertos no compasso do encaixe de cada artista com o seu tempo. Pode parecer clichê revisitar certos pensadores e certos artistas com suas obras. Mas, acredito que refrescar a memória sobre a longa história do teatro, e da humanidade mesma, nos torna mais humildes e mais ativos em nosso poder de agir no agora. Menos superficialidade, mais intimidade. Menos vaidade, mais auto percepção honesta. Menos trejeitos fascinantes e mais presença vivificante. Menos entretenimento emburrecedor, mais refletividade em nossas vidas. O grupo pensa nisso e assim, nesse momento. Não nascemos apenas pra cumprir funções sociais, sequer profissionais, não nascemos apenas para isso ou aquilo. Se permitirmos, nos esqueceremos facilmente que estamos num planeta magnífico vivendo coisas incríveis. Somos mais do que vemos na TV, mais do que nos pensamos em bancos de igreja, mais do que reprodutores, mais do que entes políticos. E essa profissão de ator está entre mundos, entre todas essas possibilidades, transita entre muitas realidades, e por isso, refrescar nossa memória, pensar sobre o que estamos de fato criando e comunicando, nossa noção de responsabilidade, precisa ser revitalizada de tempos em tempos.

Não consigo, por mais que muitos o tornem, ver um ator como uma marionete, um cabide, as peças como simples duas horinhas de “relax”, não consigo ver nos textos dramatúrgicos apenas indicações de ir pra lá e pra cá recitando linhas. Não vejo luz e cenografia apenas como decorações criativas pro palco ficar lindinho, a indumentária como passarela de moda, e nem o uso de tecnologias em cena como “inserção na modernidade” pra fingir uma vanguarda. Essas coisas para mim são muito mais do que as aparências que elas têm tomado. Não consigo ver, na raiz dessa profissão, esse descomprometimento bobo, esse excesso de autopromoção e esse simples comércio de celebridades para se vender desde papel higiênico até automóveis de luxo. A milenar profissão do ator não se resume a vender sabonetes. Nem mesmo ingressos, porque muitos trabalhos duvidosos vendem muitos ingressos. Nada contra recebermos digna e justamente pelo nosso trabalho e acho que ganhamos muito pouco frente à dificuldade do que fazemos, mas queremos nos envolver mais da alma do trabalho artístico. Hoje vemos um Nobel da paz ou da medicina, que ajudam o mundo inteiro, ganharem menos que um jogador de futebol. Vemos participantes de reality shows sendo chamados de heróis! Então entendemos a superficialidade das coisas, o comércio das banalidades reconfortantes, o supérfluo reinante não apenas nas artes, mas não queremos nos entregar.

Por isso, achamos aqui no Domo que essa onda de peças “confortáveis” reproduzindo a novela nos palcos, essas peças homenageando grandes autores apenas pra se auto referenciar como “cultura” e que nos bastidores não se sente vínculo com a obra, essa onda de peças autobiográficas egóicas da moda com vidas absolutamente desinteressantes em cena pro ator fazer catarse paga pela platéia, essas peças que cumprem a lista de vanguarda dos anuários do mercado, cuspindo no público dançando embaixo de luzinha colorida de projetor de última tecnologia, essa onda de trabalhos que imitam sucessos estrangeiros na forma, mas que carecem de alma própria, gente que não gosta de teatro se dizendo ator, gente que não gosta de dança se dizendo dançarino, tudo isso apesar de ter seu espaço assegurado, e deve mesmo ter (antes isso do que censuras incontroláveis), sentimos que carecem de mais legitimidade, porque muitos desses trabalhos existem para se cumprir uma agenda, muito mais do que para fomentar uma conversa franca entre seres humanos. Não estou aqui me referindo a esse ou aquele trabalho, porque tem bons autores e diretores, bons atores trabalhando em remontagens ou em pesquisas de vanguarda, experimentando. Mas falo aqui contra a banalização e a falta de se envolver mais intimamente com o que se quer dizer.

Isso parece não ter ligação com um projeto de pesquisa de teatro não é? (risos). Pois saibam que tem, sim. Pelo menos no nosso modo de ver o teatro, aquela arte que sempre questionou o mundo que passava, que desafiou as maiores autoridades, que colocou por terra as maiores falsidades, que exibiu o que era obsceno e que dionisiacamente perverteu as ordens estabelecidas pra nos mostrar que somos mais.

Falando assim parece que destilo rancor contra a multiplicidade, e na verdade é o contrário. Quero criar um espaço para artistas que queiram fazer de uma tal forma, que será diferente de outros, mas semelhante a mais tantos outros. E felizmente há espaço pra todos. Depois de fazer essas críticas devo emendar que tem muita, mas muita coisa boa sendo feita, aqui e no mundo.

Nada contra, meus caros, a TV e o cinema, nada contra a mídia e a propaganda, sinceramente. Mas eu acredito que o ator teatral tem algo em si, nos seus intentos, na raiz do que faz, coisas insuspeitas, porque não parecem “profissionais”. Coisas humanas, de pensar o mundo, de refletir um mundo interior, materializando aquilo que lhe veio um dia a mente, e se comunicando com os outros na busca por vivências, por amadurecimento, até mais do que por respostas. Esse teatro e essa arte que tem medo de dialogar com o que é humano em nós, medo de lembrar que também somos seres emocionais, esse teatro que acha que a técnica prescinde de envolvimento pessoal porque tem preguiça de entender que somos um conjunto de coisas (muitas delas abstratas) e não somos apenas uma máquina, esse teatro não nos interessa no momento. Não confundir o que estou dizendo com aquele teatro meloso e supostamente emocional onde se coloca criancinha chorando e chamando mamãe no palco ou esses com cenas supostamente arrebatadoras sem um mínimo de nuances, em que a atriz berra as dores de um estupro muito mais pra ser reconhecida como talentosa do que pra falar do assunto em questão na cena.

Por isso, para mim, mero mais um, o ator de teatro foi objeto de estudo de tantos gênios, como Stanislavski e Grotowski. Homens que estavam interessados nas coisas por trás dos véus, interessados no desenvolvimento do ser humano pensante, sensível, comunicador, “comunicamor”.

Nesse projeto, vamos, despretensiosamente rever nosso arcabouço de práticas, de exercícios, vermos a que servem, se funcionam mesmo para nós, se não estamos apenas reproduzindo inutilidades dentro da nossa própria realidade. Revisitar nossos conceitos, o que pensamos de arte, de nós mesmos, rever tudo pra tomar o cuidado de não ficarmos engessados pela tradição ou pela preguiça. Como faremos isso? Vocês poderão acompanhar os registros que cada um de nós colocará no ar (ou na nuvem, para usar o jargão desta mídia), e assim possam vocês mesmos examinar as possibilidades de entendimentos e percepções, sejam concordantes ou discordantes, mas unidas pelo propósito de sermos artistas íntegros, legítimos. Nem mais nem menos.

asdasd