Postado em Pesquisa Teatral

Preparação Corporal – Parte 1

Nesse novo ciclo, esta segunda etapa após o período de estudos históricos, teóricos e conceituais, o grupo se volta para o trabalho de corpo. Ter um corpo disponível, atento, fluido, equilibrado, flexível, tanto quanto possível, além de saudável, é também essencial para a autonomia e dominância do ator sobre as formas que irá receber nesta “fôrma” chamada corpo. Somos acostumados a pensar que fisicamente todos são iguais, afinal, cabeça, tronco e membros nos são comuns. Mas o fato é que para além do básico, cada corpo é único, com sua história de cuidados e/ou abusos, com sua estrutura óssea, muscular, ligamentosa e articular que contém o registro dos esforços ou inércias individuais. Sabemos da influência das pré-disposições genéticas, que estendem seus braços na formação da ossatura, da conformação geral da estrutura física. E sabemos também do grande poder que muitas vezes temos, de influenciar isto dando ao corpo instrumentação para se desenvolver. Corpos mais jovens têm em geral metabolismo mais rápido e um grande poder de regeneração, força, de flexibilidade. Mas cada faixa etária tem também suas descobertas e possibilidades, e a realidade do trabalho corporal pode estar no horizonte de todos.

Quando falamos em “preparação corporal”, temos que ter em mente que esse é um vasto campo, que começa a se desvelar quando nos perguntamos: Preparar para que? E quem está sendo preparado? Pois cada caso é um caso.

Um alpinista tem um tipo de preparo, o mergulhador outro, o fisiculturista outro, o carregador de caixas de frutas, também outro. Temos a tendência de achar que exercícios considerados básicos servem para todos os tipos de pessoas, e vemos muitas vezes uma aplicabilidade não razoável em termos de entendimento da motivação e da finalidade. Quero dizer que num plano mais amplo certa faixa de exercícios é considerada útil, mas a aplicação muitas vezes está incorreta, pela incompreensão da função de cada coisa frente às particularidades de cada corpo. A preparação para se deixar o corpo de um ator mais disponível na maioria das vezes difere da dos dançarinos dos teatros municipais (em termos de necessidades reais e dos resultados almejados), que difere da preparação dos atletas, porque cada nicho tem suas particularidades, apesar de que sim, alguns exercícios podem ser aplicados a várias categorias diferentes de pessoas. Mas não podemos deixar de pensar que estrutura anatômica, aliada a essas particularidades, a intensidade e duração, a extensão de cada exercício também contarão para se gerar uma “receita” que funcione, no sentido de trazer resultados que satisfaçam as demandas, que querendo ou não, são muito variadas.

Como exemplo, posso citar um caso que eu mesmo vi acontecer. Fui bailarino durante anos, e uma vez me encontrava no Festival Nacional de Dança em Uberlândia, um dos mais respeitados do país. Como participante do evento, eu podia transitar pelos espaços do festival. Assisti então a preparação corporal de um grupo de dança que se apresentaria logo mais a noite. A coreógrafa, certamente muito dedicada e querendo mostrar o seu melhor, exigiu dos bailarinos duas horas de uma preparação de altíssima intensidade, que os exauriu bastante. Passadas mais duas horas e o espetáculo começou, e os bailarinos estavam… Cansados! (risos).  A apresentação estava seriamente comprometida em sua espontaneidade porque era visível o esforço excruciante para dançarem uma hora de uma coreografia exigente. A preparação exigida estava além da capacidade daquele grupo específico, e não compreendia que a aplicação vem em detrimento da utilidade e da funcionalidade, e não apenas para se cumprir uma agenda de atividade física.

Então nesta nossa fase de estudos resolvemos ser honestos. Qual nosso leque de exercícios? Eles funcionam “para nós”? Estamos agindo conscientemente ao desenvolver nosso corpo, preparando-o para receber formas diversas, desde um idoso, a uma cadeira, uma criança, uma baleia ou um ônibus? E aos que se iludem achando que para materializar um idoso nas formas de seu próprio corpo não se precisa de preparação corporal, apenas porque os movimentos são mais limitados, saibam que é preciso muita CONSCIÊNCIA corporal para um trabalho tão difícil como esse, se se quer fazer algo legítimo, crível, e não apenas uma caricatura (e mesmo caricaturas bem feitas dão trabalho).

A mimesis das formas que nosso corpo pode apresentar são incríveis, insuspeitas! Então aqui menciono a palavra chave para o discernimento daquilo que nos serve ou não: CONSCIÊNCIA. Pensar o que se está fazendo, ser realista nos objetivos, experimentar, desenvolver, sentir, e refletir. E assim, entender COMO se faz.

Mesmo nos aspectos mais básicos do trabalho físico, importa a focalização mental, a sensibilização, uma atenção diferenciada e que também supere apenas as análises quantitativas, do que se produz visivelmente. Um corpo bem preparado é bem preparado interna e externamente. Porque costumamos pensar no corpo apenas como uma “máquina”. A despeito das possíveis benesses dessa comparação, a sofisticação dessa “máquina” não se compara aos objetos inanimados, porque somos orgânicos, biologicamente falando. Um corpo vivo, construído por células vivas e que pensa sobre si mesmo, se o chamarmos de “máquina”, temos que ter o cuidado de entender as suas especificidades, que são muitas.

E é esse o foco do trabalho que estamos desenvolvendo nesta etapa. Apresentei aos atores um grupo selecionado de exercícios, explicando a mecânica mental e física da atividade corporal, os complexos efeitos e consequências de seus usos, os supostos benefícios e impactos. E isso tudo para trazer a consciência corporal: o que está se fazendo, como, para que.

No segundo bimestre vimos dois aspectos mais centrais em termos de preparação: Aquecimento, e alongamento (que se completa no trinômio aquecimento-alongamento-tonificação). Falarei sobre cada um com mais acurácia adiante. Mas agora é preciso acentuar que para início de conversa, geralmente somos colocados em uma série de atividades e exercícios, correndo pra lá e pra cá, abrindo pernões, repuxando daqui e dali, suando e sofrendo, embaralhando diversos princípios de ação e funcionalidade, sem saber de onde vieram as fontes e para onde estão indo os resultados. Então para fins bem didáticos é preciso, mesmo que isso soe ridículo, dizer o óbvio: Aquecimento é para aquecer, e alongamento para alongar.

Digo isso porque já vi inúmeras vezes pessoas que se dizem com trabalho corporal não saberem isso, e mais, não saberem porque fazem isso. Simplesmente aprenderam sequências de movimentos e esforços, que lhes disseram que vão ajudar no resultado, e as repetem. No nosso caso, como somos atores, fica-se a pergunta: e ator lá precisa ter essa tal consciência?

Minha resposta pessoal para isso é de que é imprescindível que tenha. Para saber se utilizar de suas qualidades e limitações, e transformar isso em forma física visível, em presença radiante e crível, o ator precisa se conhecer, em diversos níveis. E só assim, desenvolvendo sua consciência sobre o que tem disponível, o que pode desenvolver, é que alcançará, na dominância desse saber, resultados mais satisfatórios e envolventes.

Pode parecer uma bobagem para quem não faz teatro, mas um ator concentrado que se aquece bem e se alonga de forma adequada se sente mais disponível, e assim ajuda a maturar o que será visto pelo público. Muitas coisas que fazemos geralmente não são vistas, muito da pesquisa não está nas aparências superficiais de nosso trabalho, apesar de poder o resultado desses esforços ser percebido por olhos treinados no campo do desenvolvimento do ator. Mas para nós que fazemos é de extrema urgência que nos mantenhamos revitalizados, física e mentalmente ativos. Importa que saibamos olhar as coisas num nível mais profundo, exercitando a auto-observação honesta (tanto corporal, como emocional, como psicologicamente) e a observação do trabalho dos outros, para o refinamento do que se está fazendo. Temos que nos equilibrar entre o ver, o fazer, o pensar e o ser. E é claro que observar o próprio trabalho e o de outras pessoas nos ajuda a fixar aquilo que aprendemos, para sabermos usar com inteligência. Para nós, artistas, importa fazer, mais do que posar. E é por isso que compartilhamos com vocês essa pesquisa. Não para impor nada, nem para ditar como se deve fazer, mas para lhes mostrar parte de como nós fazemos e pensamos, e assim esperamos contribuir, com ideias ou ações.

Em nosso elenco temos diversos tipos de pessoas, com diferentes históricos de trabalho corporal. Desde atores que vem da dança com um trabalho corporal mais acentuado, até atores que apresentam problemas de mobilidade. Portanto essa pesquisa nos é muito importante, para entender individualmente, e coletivamente, os efeitos e impactos das atividades que implementamos. Tanto em aquecimento, quanto em alongamento, quanto mais adiante no estudo de tônus, fluidez, contato e encaixes, veremos que elementos como força, tensão, peso, equilíbrio e a duração de cada exercício influenciam diretamente nos resultados. É preciso esse tempo de experimentação e observância para que os resultados se apresentem, uma constância no fazer. Assim percebemos que pequenas coisas, até mudanças de pressão ou aumento da duração dos exercícios geralmente nos conduz a aprofundamentos na execução e desenvolvimento da atividade em si e das regiões envolvidas fisicamente. Agora passemos a descrição do que estamos de fato fazendo, na parte 2 deste texto.

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