Postado em Pesquisa Teatral

Preparação do ator: consciência corporal e disponibilidade física

Eu tive uma formação corporal bem marcante através da dança contemporânea. Por cerca de 4 anos, estudei com o Édi Oliveira, diretor da companhia Dança Pequena e bailarino da Cia Basirah. Na época, o Édi conduzia também o Núcleo de Formação da Cia Basirah, do qual eu fiz parte por um período. Na Universidade de Brasília, pude ainda fazer aula com as bailarinas e coreógrafas Márcia Duarte e Giselle Rodrigues, que também tiveram um impacto significativo na minha relação com o meu o corpo e com o movimento (dentro e fora de cena). As minhas experiências prévias com treinamento corporal vieram, portanto, principalmente da dança, mesmo dentro do curso de Habilitação em Interpretação Teatral.

Essas experiências foram muitos importantes na minha formação como ator. As escolas de treinamento para dançarinos que eu pude ter contato eram bastante amplas, promovendo uma conscientização corporal bem eficiente. Contudo, não podemos deixar de levar em consideração que essas linhas de treinamento eram voltadas, em primeiro grau, para a preparação de dançarinos, dando o condicionamento devido à execução de um repertório específico de movimentos físicos e sensíveis.

A preparação corporal de atores a partir da perspectiva da dança é uma prática bastante comum, tanto em companhias teatrais quanto no meio acadêmico. É claro que a dança pode proporcionar o desenvolvimento de uma aptidão física bastante ampla. Mas, mesmo considerando o fato de que a fronteira entre teatro e dança está cada vez mais tênue, cabe refletir se o treinamento físico para o ator não seria mais eficiente do ponto de vista do próprio teatro, a fim de preparar o artista para execução de uma natureza específica de repertórios estéticos, emocionais e físicos. Assim, nos perguntamos, que domínio físico é imprescindível ao ator? E mais do que isso, qual a importância do treinamento corporal para seu trabalho?

Instigados sobre esses diversos pontos, iniciamos nossa investigação sobre a especificidade do treinamento físico para o ator, buscando identificar habilidades físicas específicas que consideramos necessárias à cena, bem como os caminhos para desenvolvê-las.

Vale lembrar que este estudo sobre as práticas corporais segue a parte teórica, do projeto de pesquisa do Grupo Domo. O estudo teórico inicial nos levou à discussão sobre certos direcionamentos e premissas do nosso trabalho e foi importante diretriz para as etapas seguintes. Assim, já temos maior clareza sobre o que estamos fazendo e o porquê de empreendermos esses meses de estudo.

Com esta etapa de investigação corporal, portanto, não temos a intenção de desenvolver nenhuma técnica revolucionária, universal e absolutamente original que desvele todos os mistérios da interpretação teatral. Antes de tudo, mantivemos a consciência clara de que o mais importante é a eficiência do treinamento, adequado aos nossos objetivos e à nossa realidade específica. Portanto, não nos furtamos à experimentação, desde exercícios básicos de tonificação, até atividades mais complexas que envolviam fluência e coordenação motora.

 

O corpo e o ator

Antes de falar sobre alguns caminhos percorridos na pesquisa, gostaria ainda de compartilhar algumas reflexões sobre o papel do corpo no trabalho do ator.

É comum ouvirmos que “a peculiaridade dos atores é que eles têm o seu próprio corpo como instrumento de trabalho”. Particularmente, isso me soa um pouco estranho, porque essa ideia externaliza o corpo, alienando-o do sujeito. Dizer que o corpo é apenas um instrumento deflagra a mentalidade de separatividade entre o eu consciente pensante e o seu corpo (como se uma coisa pudesse prescindir da outra), impingindo ainda uma ordem de importância, como se o corpo tivesse uma natureza inferior. A partir disso, nos alienamos de nossos corpos, como se fossem apenas veículos da mente, alma, consciência ou qualquer nome que se dê à subjetividade. Sobre isso, sugiro a leitura do artigo “A noção judaico-cristã do corpo e seus afetos plásticos na dança contemporânea”, da bailarina e coreógrafa Márcia Almeida, disponível em: http://flordechitaempoemas.blogspot.com.br/2012/01/nocao-judaico-crista-do-corpo-e-seus.html.

Na nossa sociedade racionalista e cada vez mais sedentária, essa alienação assume ainda outra faceta. O corpo é coisificado e instrumentalizado, visto apenas como um objeto ou um “bem de consumo” que utilizamos como ferramenta para executar tarefas. E mesmo quando o encaramos como máquina, nem sempre nos damos conta da maravilhosa máquina biológica que é e de seus incríveis potenciais. A maioria das pessoas nem sequer conhece os próprios pés, quase nunca os toca ou os observa, apesar de eles estarem lá, sustentando todo o resto do corpo na maior parte do tempo.

Portanto, não acho tão simples afirmar que o corpo é um mero instrumento de trabalho do ator, pelo menos sem considerar o corpo como presença viva e consciente. O corpo é subjetividade, da mesma forma que a subjetividade também é corpo, uma vez que a nossa experiência de mundo também se realiza no espaço objetivo, como poderia ser diferente? Para citar Merleau-Ponty, “ele [o corpo próprio] é a própria existência em seu movimento de transcendência” (Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção, 2011).

Nesse sentido, talvez o corpo seja antes a matéria-prima do ator, seu campo de estudo e experiências, assim como sua própria presença enquanto ser no mundo, com suas emoções e afetos. Tudo isso, no entanto, torna ainda mais premente a necessidade do trabalho corporal consciente na preparação do ator. Um trabalho que aborde tanto os aspectos fisiológicos e mecânicos, quanto os aspectos subjetivos.

 

Que ator você quer ser?

Se vamos investigar a preparação corporal do ator, uma pergunta se torna logo necessária: preparação para que? Quais são as proezas físicas que o ator deve ser capaz de executar no teatro? Essa simples pergunta já traz uma complexidade gigantesca. Quando falando de teatro abrimos um leque de infinitas possibilidades. De Stanislavski a Bob Wilson, de Grotovski a Peter Brook, se pode observar as mais diversas formas de encarar o ator e o seu corpo. A produção contemporânea ainda nos oferece variadas facetas de hibridismos artísticos, como teatro-circo, dança-teatro e performances, pressupõem caminhos específicos para a preparação corporal.

Então, vamos partir do pressuposto de que não há um ator genérico, da mesma maneira que não há um “corpo do ator”, mas antes um ator num corpo. A importância do trabalho corporal surge justamente da percepção de que o nosso corpo determina o tipo de ator que somos e o tipo de teatro que fazemos. Não há, tampouco, como separar o corpo do discurso estético ou ético do ator em cena.

A partir dessa constatação, no grupo Domo considera qualidades indispensáveis ao tipo de teatro que queremos realizar a consciência, tanto corporal quanto espacial, bem como a disponibilidade física. A consciência vem da autopercepção e da vivência atenta ao corpo, é o conhecimento que o ator pode desenvolver de sua singularidade ou de sua generalidade, suas capacidades e seus potenciais, bem como de suas limitações e da possibilidade de lidar com elas. A consciência está profundamente relacionada com presença em cena e demanda um exercício contínuo. A consciência não é algo que se desenvolve de forma definitiva, ela demanda continuidade, pois o corpo está em transformação constante. Quando observamos atores idosos ou obesos que têm uma presença cênica fantástica podemos ver que, mesmo em suas limitações, lhes sobra consciência de seu estado presente.

Por disponibilidade compreendemos a aptidão física para realizar um espectro de atividades. O simples fato de estar em cena por mais de uma hora de espetáculo já demanda muita energia. Há atores que não tem condicionamento para se manter uma hora em cena sem estar esbaforido e sem perder energia, o que também influi no ritmo do espetáculo. Alguns desses atores desprezam a preparação física, pois acham que é coisa de bailarino ou de acrobata, e pensam que cabe ao bom ator apenas as inflexões no texto dramatúrgico, sem se dar conta que isso tem um impacto profundo na qualidade de seu trabalho. Assim, consideramos que, quanto maior a disponibilidade, maior a versatilidade de um ator. Em “A Construção da Personagem”, Stanislavski afirma que “o ator deve mover-se com uma facilidade que aumente a impressão criada em vez de distrair o público dessa impressão” e para conseguir isso, “precisará de um corpo saudável, em bom funcionamento, dotado de um controle extraordinário”.

Consciência e disponibilidade levam ao domínio do ator sobre suas próprias faculdades. Ou como formulou Stanislavski, “antes de tentar criar qualquer coisa, vocês têm de pôr os músculos em condição adequada, para que não lhes estorvem as ações”. É claro que estamos falando do aspecto corporal, mas isso também se estende para o âmbito emocional e até mesmo conceitual.

Por tudo isso, nós nos propusemos, em nossa investigação, ao estudo e à prática de certos grupos de exercícios, visando ampliar a consciência corporal e a disponibilidade. Também consideramos importante o desenvolvimento de algumas qualidades específicas como agilidade, equilíbrio, resistência aeróbica, força, flexibilidade e coordenação motora.

Já que estamos falando de disponibilidade, preferimos começar bem do básico, investigando exercícios iniciais que visem a preparação do corpo para qualquer atividade física. Se considerarmos que atuar em um espetáculo, durante mais de uma hora, pode demandar um esforço físico descomunal, comparado até mesmo a uma prática esportiva, não podemos desprezar a importância desses exercícios preliminares.

Assim, nosso estudo começou com a experimentação de uma série de exercícios voltados ao aquecimento.  Como o próprio nome diz, o aquecimento tem como o objetivo elevar gradativamente a temperatura corporal, deixando os músculos mais flexíveis e receptivos, preparando ainda o sistema cardiovascular e pulmonar para a atividade física. O aquecimento aumenta a velocidade do metabolismo, a lubrificação das articulações, a circulação sanguínea e a oxigenação do cérebro e dos tecidos, diminuindo as tensões musculares e melhorando a disposição física e mental. O aquecimento pode ainda ser geral ou específico, ambos importantes antes da atividade física. Os exercícios gerais são úteis para a disponibilidade psíquica e física como um todo, enquanto os específicos são voltados para determinadas articulações ou grupos musculares que serão mais exigidos durante a atividade física.

 

Demonstração de aquecimento estático com tonificação

 

Outra categoria de exercícios preliminares é o alongamento, que é voltado para a flexibilidade muscular. Como o próprio nome diz, são exercícios destinados a aumentar comprimento do músculo, permitindo uma maior movimentação da articulação comandada por ele. A vida sedentária tem como consequência o encurtamento das fibras musculares, o que traz limitações posturais e até de movimentação. No trabalho do ator, o alongamento tem um papel muito importante, uma vez que corrige a postura, aumenta a agilidade e amplia as possibilidades de movimentação. Já o alongamento realizado antes de uma atividade física específica, prepara de forma gradativa as fibras musculares para a execução da atividade, evitando lesões e proporcionando relaxamento (algo importante antes de entrar em cena) e ativação da circulação nos grupos musculares específicos.

 

 

Já a tonificação está relacionada ao fortalecimento dos músculos, através de exercícios que provoquem a tensão das fibras musculares. Tonificar também significa fortalecer a estrutura de sustentação do corpo, protegendo o esqueleto e proporcionando força, postura, equilíbrio, agilidade e precisão nos movimentos. Lembrando que nosso objetivo é o de buscar um corpo saudável e disponível, portanto nossos exercícios de tonificação não visam a hipertrofia, que é o aumento da massa muscular, até mesmo porque a hipertrofia pode promover o encurtamento das fibras e a diminuição da flexibilidade. Sobre isso, certas observações de Staniskavski sobre o halterofilismo, em “A Construção da Personagem”, ainda são bastante pertinentes nos dias de hoje em que estamos acostumados com a estética de academia. Para ele, os atores precisam de “corpos fortes, poderosos, desenvolvidos em boas proporções, bem plantados, mas sem nenhum excesso pouco natural”, pois “o objetivo da nossa ginástica é o de corrigir e não o de estufar o corpo”.

Falando de tônus de forma mais ampla, como as tensões ou contrações musculares, que preparam os músculos para qualquer tipo de ação. O controle do tônus e do relaxamento também tem um reflexo significativo no domínio do ator sobre sua expressão corporal, uma vez que através do tônus podem ser percebidas as emoções, pensamentos, hábitos e estilo de vida de um indivíduo. Gostaria de lembrar que uma pesquisa valiosa sobre o tônus foi desenvolvida de forma bem aprofundada por Gerda Alexander, idealizadora da técnica da “Eutonia”.

Aplicando todos esses princípios à nossa realidade, procuramos experimentar exercícios que promovessem o aquecimento, o alongamento e a tonificação. Por outro lado, buscamos sempre considerar que esses exercícios visam prepara para uma atividade criativa e lúdica e não apenas para execução de uma atividade apenas mecânica. Portanto, alguns dos exercícios têm um caráter híbrido, trabalhando, por exemplo, aquecimento e tonificação ao mesmo tempo ou associando outras qualidades importantes como coordenação, equilíbrio, concentração e fluência, como é o caso do “eagle cross”.

No nosso processo de pesquisa, consideramos também que, por mais que seja importante o estudo da literatura sobre o tema, nada substitui a experimentação e a observação individuais sobre como cada exercício age no corpo.

 

Que tipo de ator eu sou

O corpo é dinâmico e está em constante mudança. Mesmo com a vivência da dança, meu corpo estava “enferrujado” e minha percepção corporal bastante embotada, devido ao meu estilo de vida um pouco displicente e sedentário. Esta etapa do processo de manutenção foi bastante importante para mim, tanto do ponto de vista intelectual, por poder observar e refletir sobre a preparação corporal, quanto do ponto de vista físico, pois pude recuperar minha atenção ao corpo e poder voltar a ter uma atividade física regular.

Os exercícios de aquecimento que experimentamos se mostraram bastante eficientes, não apenas para preparação para uma atividade física de maior impacto, mas também proporcionaram uma melhora significativa no condicionamento físico, em longo prazo, através da prática regular, quando feitos em maior série.

Alguns dos exercícios, como o “eagle cross”, o “oito”, o “impulso giratório sobre a base” e as séries de saltos, têm um caráter bastante aeróbico, aumentando bastante ritmo cardiorrespiratório e demandando maior nível de energia. Esses exercícios são eficientes quando se quer alcançar um pico de energia, envolvendo todo o corpo, em pouco tempo, mas também podem acelerar o processo de exaustão. Já outros exercícios, como o “sustento de flexão”, o “sustento de meia ponta” e o “transverso com barra”, provocam um esforço mais concentrado e anaeróbico, favorecendo a circulação sanguínea em grupos musculares específicos e sendo propícios à preparação para atividades que demandem maior resistência e menos explosão.

Levando em conta a natureza específica do aquecimento, também experimentamos exercícios coletivos ou em dupla, como o “voo em dupla”, as “bolas imaginárias”, a “ciranda” e o “círculo de seguir o mestre”. Esses exercícios incluíam o elemento lúdico e o contato entre as pessoas, agregando outras qualidades à atividade. Um exercício que gosto bastante é o “voo em dupla”, pois, além da força e da contração muscular, envolve ainda equilíbrio e confiança no parceiro.

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Sobre flexibilidade, também percebi avanços significativos no meu corpo. Um desafio ao alongamento é manter o relaxamento, a fim de permitir que as fibras musculares possam ceder. Os exercícios de flexibilidade, portanto, envolve um alto grau de concentração e consciência corporal. Nesse sentido, os exercícios com a barra foram particularmente interessantes para mim, pois o apoio da barra e, em alguns casos, a força gravidade já exercem uma ação sobre a musculatura, permitindo o relaxamento dos músculos adjacentes.

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Já o tônus, confesso que é uma de minhas deficiências, mas pude observar resultados bastante animadores. Fico impressionado com a capacidade incrível do corpo de condicionar-se. Com apenas 3 semanas, de abdominais, duas vezes por semanas, por exemplo, eu já percebia uma diferença significativa de postura e resistência física. Já era capaz de fazer um número repetições que seria impensável num primeiro momento. Exercício que também se mostraram bastante eficazes foram aqueles que utilizavam a barra.

Com tudo isso que foi dito e passado todo esse processo, para mim a reflexão que fica é em que medida o resultado da prática corporal realmente “aparece” na cena. Algo que não nos damos conta é o processo de assimilação do corpo de nossa rotina, hábitos e experiências. Acredito que, mesmo que um ator interprete um personagem tetraplégico, toda a sua vivência corporal estará presente na cena e não apenas no aspecto físico, mas também criativo. Como diria Stanislasvski, através da atividade física, “chegamos a fazer novos movimentos, a experimentar novas sensações, a criar possibilidades sutis de ação e expressão”.