Postado em Pesquisa Teatral

Sensibilização, Construção de Cena e Desfecho

Tendo a consciência da importância e da qualidade do trabalho empreendido e realizado, chegamos à fase final, de concatenar todas as etapas, e leva-las aquele passo importante: o do exercício de construção de cena. A abstração necessária, onde técnica, visceralidade, repetição e prática, entendimento, estudo e leveza, aplicação pessoal, criatividade e disposição de experimentar, tudo isso entra em consonância para este que é o exercício final deste projeto de pesquisa. Algo que me alegra muito, além do resultado positivo óbvio que isso tem em meu trabalho pessoal e nas condições criadas para meu grupo teatral é esta chance de poder compartilhar o registro, levando a muitas pessoas a práxis de nossa arte.

Com milhares de acessos, nosso blog vem contribuindo bastante para a ampliação do debate, para o surgimento de novos horizontes naquilo que queremos realizar daqui pra adiante, tendo em conta que os 20 anos do Grupo Domo nos deram e nos dão muitas possibilidades e muita alegria, a despeito das dificuldades vividas (como são vividas por qualquer trabalho de longa duração que se preze).

Muitas pessoas já passaram por aqui e tantas outras virão! E para aqueles que permanecem fica a gratidão do esforço e a manutenção, não só da pesquisa, mas do trabalho íntimo e da amizade e carinho entre nós. Nossa relação com o teatro nunca foi mercadológica ou exibicionista, mas sim veículo de relações e vivência da multiplicidade de aspectos da condição humana. Condicionados em alguns aspectos sim, mas livres como seres criadores de nossa própria história e trajetória.

A proposta desta fase é, além da cena propriamente dita e da criação de soluções para as preocupações estéticas que advém da obrigatoriedade da sua realização, é com relação a estados prévios na criação, e dos papéis que exercem criadores, atores e diretores no cumprimento de seus deveres enquanto laboram para a concretização do que pensam, e transpõem isto a forma tridimensional.

Formamos, por sorteio, duplas em que cada pessoa seria dirigida pelo colega, e o dirigiria também. Cada ator pôde escolher o tema de sua cena, o que abriu espaço para importantes discussões a respeito das motivações de criar. De onde vem a cena? Que objetivo? No que ela dialoga comigo? O que quero dizer como artista? Que capacidades devo aplicar, agora que munidos de um ano e meio de estudos e práticas, para compor aquilo que virá à vida em cena? Que tipo de diálogo suscito com o que faço? É crível? Interessa? Que interpretação estou dando ao tema? Como passar do tema ou de uma ideia ao ponto de partida da construção?

De que elementos preciso, interna e externamente para a sua realização? Onde se entrelaçam técnica e abstração poética naquilo que faço? Por que faço determinadas opções estéticas ou metodológicas para criar? Tenho eu mesmo relação com o que está vindo a cena? É orgânico? Como me relacionar, apoiar e fluir artisticamente na parceria com o outro? Onde entra técnica? Onde entra emoção? Uma coisa existe sem a outra?

Como ator, cada um teve a oportunidade de se ver como criador também, muito além de apenas um “pau mandado”. Mas, no melhor dos sentidos, um pedreiro das artes, que trabalha pra construir mas também se envolve naquilo que faz. Ser ator nesse sentido trouxe grandes questões também. Até onde “obedeço”? Até onde opino? Até onde estou aberto a ouvir e experimentar? Até onde contribuo e aceito contribuições?

Ser esta pessoa, disposta a experimentar e receber em si uma composição de formas e sons que moldam uma personagem, projetar de si uma realidade, ainda que efêmera, não é nada fácil, assim como não é fácil dirigir atores, cenas, espetáculos, montagens inteiras. Como a palavra indica: dar a direção, para que o ator experimente e crie, mature o que faz, se revele no seu melhor e comunique com clareza. A maleabilidade deve ter estrita relação com a busca conjunta pelo melhor em cena, e não apenas aquilo que um ou outro querem, apesar de sim, decisões tem que ser tomadas e uma ordem de trabalho estabelecida para se poder chegar a algo que se chame “resultado” bem feito. Se no fim das contas este resultado do trabalho for um amontoado de vaidades de quem quer que seja, ou apenas uma “visão” de um encenador ou o desfile de uma diva, sem a participação e entendimento do trabalho em si, por parte de quem propõe e de quem executa, para nós isso não será teatro, mas sim outra coisa…

Por isso os atores serem também diretores nesse exercício, mesmo que não tenham experiência profissional com esta área, os colocou frente às diversas questões de quem está  “nos bastidores” do palco. Este processo, que no fundo gera empatia entre as pessoas, ajudou muito na compreensão do quão importante é esta relação ator/diretor e o quanto ela pode ser enriquecedora, priorizando a qualidade do que está sendo feito, e não apenas dando vazão para birras, por mais virtuosas que pareçam. E como diretores, se viram neste questionamento: como promover esse resultado magico em que uma cena está como deveria ser? Como saber se já “está pronto”? Como lidar, nas duas posições, com os egos e vaidades? Como fazer o ator descobrir o caminho para realizar uma visão e como construir esta visão conjuntamente? E muito mais questões surgiram e tem que surgir!

Muitos diretores ainda hoje se veem inseridos naquele modelo de ensino das artes do século XIX, em que têm que humilhar e gritar com seus pares e subordinados. Nós no Domo não acreditamos nisso, achamos démodé e ultrapassado esse estilo de criação, porque não valoriza a obra, mas sim o obreiro… Agora, claro que temos diretrizes e papéis, onde o ator procura experimentar e o diretor propõe e decide. Então o exercício de ser ator/diretor colocou a todos nesse estudo de como e por que cada coisa existe e funciona.

Acreditamos num teatro onde, por mais que papéis sejam definidos e cada um exerça o que tem que fazer profissionalmente, gostamos desse sabor das inter-relações, e do apoio mútuo na criação. O que não tira nem a possibilidade de experimentação do ator, e muito menos a capacidade de decisão do diretor. Ambos devem ter seu espaço preservado, mas serem também respeitados como pensadores de arte.

Eu, como diretor do grupo, não me envolvi pessoalmente nesta etapa, no sentido de opinar esteticamente, influenciar nas decisões características de cada cena e de como cada um assumiu seu papel. Minha posição não era a de criticar ou “corrigir”, mas sim a de fomentar. Não assisti as cenas até a sua realização, e as vi juntamente com o público, pela primeira vez. Não assisti a direção de ninguém, e me reunia com eles apenas para falar, genericamente, sobre o fazer artístico e na busca pela ampliação das possibilidades, assim como para responder dúvidas e propor atividades.

Mas estive presente dando orientações sobre o que é ser ator, o que é ser diretor, como nos respeitarmos dentro de cada coisa, e como nos comunicarmos com os outros, intelectualmente, sensorialmente, sensivelmente, artisticamente. Falei muito sobre o respeito, a clareza, a necessidade de se colocar e de ouvir (e de se ouvir também), sobre as relações pessoais e profissionais em jogo, e apontando a direção da importância do trabalho em si, de vivê-lo e de apresentá-lo, de comunicar, de sair de si e expandir aquilo que podemos. Falei sobre a importância também de se prezar pela qualidade, acima das vontades menores, e de se procurar o bem comum, seja profissionalmente seja no nível pessoal, porque acreditamos nesse conjunto de atores dotados de reflexão, e conscientes, do que fazem dentro e fora dos palcos. Nem todos gostaram e se sentiram confortáveis com isto, e nem todos admitem a liberdade que tiveram em tudo. Mas, contudo, o trabalho foi feito.

As cenas elaboradas ainda tinham, por força da pesquisa e do entendimento das possibilidades dramatúrgicas (que muitas vezes fechamos na primeira opção e não nos abrimos para ver além), outra obrigatoriedade: teriam que ser feitas duas versões da mesma cena, para que cada ator e diretor pudessem experimentar, com liberdade, estar em diferentes posições, e trabalhar seu olhar, sua visão artística, manipulando-a e burilando-a para ver o que acontece! Como não se havia o compromisso da apresentação de um espetáculo, mas sim o de investigar (mote da manutenção), os profissionais se sentiram mais livres e relaxados, sabendo que podiam “errar”, que ninguém estava ali pra cobrar caríssimos ingressos e suplantarem o talento de ninguém, e muito menos pra “julgar” o exercício, porque apesar de analisarmos os resultados, não tínhamos interesse em apresentar uma  peça, mas de investigar o exercício e nos dispormos a, aí sim, entendermos o caminho que nos leva a sermos capazes de empreender a jornada de um espetáculo teatral.

E mais: as duas cenas deveriam ser apresentadas duas vezes. Uma na sala de aula, em nosso espaço cultural, com iluminação adequada e figurinos próprios, num espaço “reservado”, mini palcos, assim tendo essa vivência do evento “protegido”, onde as pessoas saíram de casa para vê-los e para ter a experiência teatral. Ou seja, num ambiente “feito” para aquele momento. Mas numa segunda encenação os atores deveriam fazer estas cenas em outro lugar, qualquer lugar que não os espaços estabelecidos como tradicionalmente receptores de cenas e de peças. Fora dos palcos ou dos centros culturais, mas sim na rua, no ponto de ônibus, na universidade, no cemitério… Porque o objetivo era expandir a sensorialidade de cada ator e colocá-lo frente a realidade última da coisa: Escolhemos! Fazemos escolhas e elas interferem em como e no que queremos comunicar. Apresentar as cenas no teatro e em ambientes não usuais, ou até inóspitos para a cena foi importante para que cada um sentisse também como o que criaram chegou ao seu interlocutor. Se conseguiam abrir e manter uma relação.

Isso sem mencionar a importância de se pensar antes de fazer escolhas não só nas artes, mas na vida, pela consequência que isso tem. E por mais bem acabado que fique o trabalho, ainda depende, como em todo diálogo, da inesperada bagagem de memórias, humor e sensorialidade do outro. Somos responsáveis por um alto nível de profissionalismo naquilo que fazemos, mas sem esquecer que, além de ser humano e orgânico, o teatro é uma arte de encontros, mesmo que o ator não fale com a plateia diretamente, mas o fará em certo nível, e este responderá, na vida.

À respeito de como foi este processo para cada um, vejamos o que eles mesmos disseram, mais adiante. Por mim mesmo posso falar que fiquei muito satisfeito com o resultado, independente dos juízos sobre a qualidade estética e das opções feitas pelos artistas envolvidos. Como exercício, tentativa com erros e acertos, como proposta de pesquisa e investigação de si e do outro, todos foram bem sucedidos. Para aqueles que se empenharam o saber vem, naturalmente, porque se envolveram por entender a proposta, por quererem participar e aprender coletivamente, por terem obviamente também um “lucro” pessoal que foi muito além das bolsas e ajudas de custo recebidas. Foi, para a maioria, um exercício de autoconhecimento e de revitalização artística no sentido de se reencontrarem com a ética, com a criatividade, com os fundamentos do teatro, e com a integridade, (tanto no sentido de integrar tudo num feixe de experiências úteis, assim como integridade no sentido de se tornarem mais conscientes de seu valor).

Não posso eu mesmo responder pelo que eles acharam do processo, porque só cada um sabe o que recebeu. Mas espero que tenha sido de grande valia a tentativa, ainda que contenha “erros”. Particularmente me sinto muito privilegiado de estar nessa posição de poder trabalhar com algo tão profundo e belo quanto o teatro e as artes, e me sinto muito feliz quando vejo que a meu lado, hoje, tenho pessoas que buscam, além de serem bons profissionais também aprenderem num sentido mais intrínseco: aprender a viver. Foi bastante difícil coordenar este um ano e meio de projeto, a logística progressiva com cada etapa complementando a anterior, registros, entrevistas, filmar e fotografar tudo, e ainda lidar com todas as questões dos gostos, vontades, diferenças e idiossincrasias de cada um. Mas o volume de conhecimento gerado e a prática internalizada fizeram valer a pena.

Quem passou pelo grupo, que guardem o que receberam de bom. Quem ainda vai passar, que venha o melhor! E para quem puder e quiser ver nosso trabalho e conhecer nosso material, tudo que andamos disponibilizando, saibam, estamos conectados! E sempre que possível, vamos abastecer nossos canais com informações e registros. Seja nossa página no facebook, nos blogs, em nosso site que em breve entra no ar (e que apresentará a todos o documentário sobre nossos 20 anos), ou ainda, na apresentação de nossos espetáculos e experiências artísticas no teatro e em outras artes, e também no oferecimento de nossos cursos, palestras e workshop. Um grande abraço a todos, e VIVA O TEATRO!

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