Postado em Pesquisa Teatral

Última fase: Cena e conclusão

A última etapa do processo de manutenção foi a criação de cenas. Parece coerente que essa etapa tenha vindo após todo o trabalho realizado até então, que nos deu respaldo para o processo de criação e serviu como exercício para que puséssemos em prática tudo o que foi visto ao longo no ano – as leituras e estudos teóricos e os trabalhos técnico e de sensibilização de voz e corpo.

Nesse ponto pudemos aplicar o que foi visto com as leituras de uma forma mais indireta, que reflete na forma e no discurso do que foi criado, já que o estudo teórico foi voltado pra discussões estéticas e sobre o fazer teatral. Confrontamo-nos com perguntas, tais quais: por que fazemos teatro? Como queremos fazer teatro? Qual o lugar do teatro no mundo em que vivemos? Além de reflexões sobre o trabalho de grupo e sobre a arte contemporânea num contexto geral e mais específico das artes cênicas. Muitas dessas perguntas foram respondidas e outras ainda são combustíveis de constante pensar, e é bom que sejam assim, pois muitas delas não se fecham, não se chega há uma verdade absoluta, mas a uma série de possibilidades. Esse aspecto já foi falado mais profundamente no texto sobre o período em questão, mas é importante salientar sua influência na criação da cena.

Outro aspecto riquíssimo desse exercício cênico foi a possibilidade de investigar a aplicação das técnicas apreendidas durante as atividades práticas da manutenção. Primeiramente o corpo mais disponível. É perceptível o quanto a preparação corporal aumenta o poder criativo do corpo em cena. Segundo, observar o uso de cada técnica e como aquilo pode servir em cena. Para mim o trabalho de voz foi um dos mais importantes, pois é uma das minhas maiores dificuldades: a projeção da voz. E em uma das minhas cenas eu tinha que gritar do começo ao fim – eu teria que gritar sem machucar a laringe e sem causar incômodo auditivo nas pessoas que estivessem assistindo. Na outra cena eu tinha que falar baixo, mas de modo que todos ouvissem. Foi um exercício de auto percepção e de muito esforço para alcançar bons resultados nesses pontos. Creio que seja uma coisa que ainda deve ser muito trabalhada por mim, mas que acredito que tenha tido um bom desempenho dentro do meu percurso de estudo.

Para a criação das cenas nos separamos em duplas em que um seria o diretor do outro. A princípio fiquei preocupada, pois não tinha ideia de como dirigir uma cena, mas dei a sorte de ter o Leudo como parceiro da minha dupla e ele teve um papel fundamental de tutor, mesmo que não fosse essa a proposta e mesmo que ele não tenha se proposto a isso, aconteceu naturalmente. Ele me ajudou a compreender os aspectos que eu devia interferir e sobre como eu poderia colaborar com a criação da cena dele. Isso se deu a partir de observá-lo dirigindo a minha cena principalmente. Nossas direções se deram mais como uma parceria entre diretor e ator, uma relação horizontal entre ambos.

O principal aspecto do nosso trabalho em conjunto foi o estudo profundo dos textos escolhidos para a encenação. O entendimento que cada um teve do texto e qual aspecto seria salientado na cena, foi a primeira coisa, e em seguida cada um falou como havia idealizado aquela cena. Depois vieram os estudos sobre a melhor forma de abordar o tema principal de cada cena. Após isso voltamos ao texto para trabalhar com blocos de sentidos e criação de verbos para cada um deles, a fim de melhorar a compreensão do texto, nos termos sintáticos e semânticos – essencial para que se tenha convicção de toda e qualquer coisa que se fala. Além disso, essa criação dos blocos de sentidos permite que definamos as atitudes de cada momento falado, criando assim o mapa da cena. Estudamos as circunstâncias internas dos personagens em dois contextos: primeiro no contexto da peça escrita em si, e depois no contexto da cena que pretendíamos criar.

Dado esse processo partimos para as experimentações práticas de tudo isso, e foi quando começamos os ensaios e pudemos entender o que “funcionaria” ou não em termos de cena e também para o tema e forma que havíamos pré-definido para cada um. Nesse ponto, percebi a importância do diretor de manter as coisas coerentes, no sentido de que durante o processo e criação a cena não se perca em excessos, firulas ou mesmo coisas que por mais que sejam interessantes, não funcionam para aquele momento. Além disso, ser dirigido é se abrir a novos olhares e nossas possibilidades de ver as coisas e estar aberto a experimentar.

Para a minha cena primeiro veio o tema, depois o texto. Escolhi falar sobre duas consequências do machismo: a violência doméstica e o discurso sobre a necessidade de subserviência da mulher. O texto escolhido foi: A megera domada de Shakespeare, na cena final em que Catarina já está “domada” e fala sobre como a mulher deve se comportar no casamento. Foi difícil levar esse texto para os contextos escolhidos, pois quando nos deparamos com ele, discutimos muito sobre a possibilidade de intenções ambíguas da fala de Catarina. Estaria ela sendo irônica ou realmente havia sido domada? Para poder prosseguir com a cena tivemos que decidir que ela realmente havia sido domada e que a partir dessa constatação usaríamos o texto de forma que aquilo seria dito com convicção pelas personagens e que essa verdade é que daria o tom de ironia das cenas.

A primeira personagem criada a partir disso foi a pastora, dado o papel que a religião tem na “formação moral e nos valores” das pessoas, e que desde sempre as religiões ditas cristãs têm uma relação de misoginia e dominação da mulher – o ícone do pecado. Uma pastora de uma igreja evangélica pregando sobre como a mulher deve se comportar no casamento, pregando submissão em silêncio aos berros, e de maneira impositiva já é em si uma grande contradição. Ela está em uma posição de liderança!

IMG_4310 IMG_6591 IMG_6610

A segunda foi a mulher que sofre violência doméstica e lida com os discursos de culpabilização da vítima e de submissão e obediência da esposa que a nossa sociedade ainda impõe, e se cala diante da violência com a desculpa de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. A cena se passa num momento muito sensível, logo após a mulher ser violentada, em que ela está tentando acobertar sua raiva pelo marido e a dor que sente com autodepreciarão e autopunição. Ela repete, até que consiga acreditar que a culpa foi dela daquilo ter acontecido e que deve se comportar melhor daqui pra frente pra que isso não se repita. Mas que ela estará pronta para quando ”seu marido a quiser”.

São duas cenas muito diferentes criadas a partir do mesmo texto, acredito que da forma como foram conduzidas, conseguiram cumprir com o que foi proposto por mim e pelo Leudo como diretor, mas perceber isso só foi possível quando apresentamos diante do público. Só então é que veio a sensação de que aquilo era de fato uma cena e a noção do que funcionou e o que não funcionou. As pausas, as intenções, a variação de volume… A reação do público vai pontuando o que fica e o que os toca. Essa troca é fundamental.

IMG_6638

A transposição dessas duas cenas para a rua foi difícil, pois abordar esse tema exigiria uma postura de embate diante das pessoas. Como trazer isso para o cotidiano? Como afetar as pessoas em seus caminhos comuns? Como dizer isso que eu disse sem o suporte da configuração público-palco? Essa investigação me fez refletir fortemente sobre a comunicação entre ator e público, sobre quais elementos da encenação além da palavra eu posso usar para comunicar. A partir dessas questões decidi que minhas cenas seriam as mesmas personagens a partir do ponto de vista de como elas agiriam no dia a dia. A pastora foi pregar seus ensinamentos, distribuindo panfletos sobre o que a bíblia diz sobre o papel da mulher na, Universidade de Brasília. Esse lugar foi escolhido porque apesar de ser um ambiente em que se espera que as pessoas sejam mais educadas e informadas e estejam conscientes sobre o mundo em que vivem, ainda há quem nade contra a maré. No caso do tema em questão, as Universidades, apesar de terem mais alunas do que alunos, ainda possuem mais professores e pesquisadores homens. Além disso, ocorrem casos de violência sexual dos mais variados, abusos e estupros em festas e trotes, ou até mesmo no dia a dia. Assédio de professores a alunas, aproveitando sua situação de “superioridade”. Tendo isso em vista achei importante levar essa discussão para o ambiente da universidade, trazer esse assunto à tona e ver o quanto as pessoas são capazes de confrontar pensamentos machistas e retrógrados.

IMG_6621 IMG_6625

Cenicamente o maior desafio é manter a fé cênica, acreditar naquilo que se fala pra que o outro também acredite, eu não podia deixar que as pessoas, num primeiro momento duvidassem que eu falava a sério, pois eu queria enfatizar que existem muitas pessoas que realmente falam isso a sério, para num segundo momento chamar a atenção delas para as consequências desse discurso. Lidar com o imprevisto e inesperado também foi desafiador. Na rua você não sabe o que esperar das pessoas, como elas vão reagir, e dependendo do que elas fizerem você tem que estar totalmente seguro do seu personagem para reagir de acordo com ele, para que não se perca a coerência.