Postado em Pesquisa Teatral

Voz e Corpo

A tendência de encararmos o corpo como algo separado da subjetividade, a partir da dicotomia “eu consciente pensante x corpo”, traz ainda muitas implicações e restrições no estudo vocal do ator, que devem ser consideradas. A voz parece estar mais próxima do senso comum do que é o sujeito do que o corpo e seu movimento. Em geral, parece que temos uma identificação maior com a voz, pois no processo de fala, há uma elaboração mental mais evidente do que no processo de geração de movimento, que parecem mais mecânicos e menos mentais do que a voz.

No entanto, para se produzir voz é necessário um processo mecânico tão complexo quanto de qualquer outra movimentação corporal, pois envolve músculos, ossos e articulações. Ao mesmo tempo, só de pensarmos em executar um movimento simples, como movimentar um dedo, músculos e ossos são ativados, envolvendo uma complexa estrutura neurológica. Portanto, voz também é corpo, assim como corpo também é consciência e subjetividade.

Assim, tudo o que deve ser considerado para a preparação corporal do ator, deve igualmente ser considerado para a produção vocal. Podemos até fazer uma separação entre estudo corporal e estudo vocal do ator para fins didáticos, pois poderemos levar o nosso foco para a investigação de uma parte específica do corpo, mas jamais poderemos fazer essa separação de fato. E, como corpo, a voz tampouco pode ser instrumentalizada, como algo separado do ator, a voz é corpo, é movimento e é o próprio ator. Ou, nas palavras de Antonin Artaud:

 

“Não se separa o corpo do espirito, nem os sentidos da inteligência, sobretudo num domínio em que a fadiga incessantemente renovada dos órgãos precise ser bruscamente sacudida para reanimar nosso entendimento”.

(ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993)

Recapitulando, o trabalho corporal utilizado pelo grupo Domo se baseia em três premissas: consciência, disponibilidade e sensibilização. Sendo assim, essas premissas também apareceram como orientadoras nesta etapa de estudo vocal do ator.

Como a voz é produzida? Como funciona esse processo mágico de transformar pensamento em ondas sonoras? É impressionante, mas grande parte das pessoas não tem a menor ideia de como isso acontece. Mais impressionante ainda é constatar que muitos estudantes de teatro e até mesmo atores profissionais nunca se aprofundaram nessa questão.

Quando eu dou oficinas teatrais sempre gosto de conduzir um processo detalhado de conscientização corporal, que começa com um tempo demorado de exploração do pé. Algumas pessoas ficam intimidadas ou até sentem nojo de tocar o próprio pé. Nessa hora, confessam que não têm o hábito de observar, tocar ou sentir o pé, como se fosse uma coisa insignificante o papel dos pés de sustentar todo o corpo, todos os dias. Com a voz é a mesma coisa, o ato de se comunicar através da voz é tão natural e corriqueiro para muitas pessoas, que parece até mesmo insignificante. No geral, as pessoas não se lembrar da própria voz, a não ser quando têm algum problema de saúde.

Assim, iniciamos esta etapa de nosso projeto de pesquisa através do estudo fisiológico. Detemo-nos sobre as diferentes etapas da produção da voz: respiração, fonação, ressonância e articulação. Em cada etapa, observamos tanto os aspectos teóricos, através de vídeos e leituras, como também observamos em nós essa produção através de exercícios e experimentações.

A partir da consciência sobre o nosso corpo, podemos conhecer nossas limitações e habilidades. Também podemos direcionar nossos esforços a fim de ampliar nossas capacidades, isto é, a nossa disponibilidade corporal. E como já disse, quanto maior a disponibilidade, maior a versatilidade de um ator.

Na produção vocal há uma conversão da energia mecânica do ar (da respiração pulmonar), em atrito com as pregas vocais, em energia acústica (som). Portanto, a consciência e controle da pressão do ar no processo de respiração têm implicações diretas sobre a intensidade do som produzido. O processo de respiração pulmonar, por sua vez, após o impulso neurológico, é basicamente muscular. A entrada e saída de ar dos pulmões são comandadas pela contração do diafragma e dos músculos intercostais. Portanto, assim como o abdômen, por exemplo, podemos fazer um treinamento de “musculação” nos músculos envolvidos na respiração.

Durante essa etapa, portanto, experimentamos exercícios direcionados à respiração diafragmática, intercostal e torácica, trabalhando grupos musculares específicos, com o objetivo de ampliar o controle da pressão do ar durante a emissão sonora. Também percebemos a importância de uma ativação integral do corpo na nossa emissão vocal. Não é só o diafragma e as pregas vocais que trabalham, mas todo o corpo está envolvido no processo de produção vocal. A ativação do eixo vertical, pelo alinhamento dos pés, quadril, coluna, cintura escapular e cabeça, favorece a respiração, pelo equilíbrio do tônus corporal (com o relaxamento de tensões desnecessárias), fortalecendo ainda os pontos de apoio para a “coluna de ar”, na emissão de voz.

O processo de fonação, propriamente dito, refere-se à vibração das pregas vocais à passagem do ar. Nesse momento, os diversos músculos localizados na laringe ajustam a tensão das pregas vocais, regulando assim a altura (que varia do grave ao agudo), bem como a duração do som produzido. Além da fisiologia, conhecemos a nossa tessitura (notas articuladas sem esforço) e extensão vocal (notas alcançadas na escala tonal), bem como aprimoramos nossa noção de ritmo na emissão vocal, através de exercícios regulares de solfejo, vocalize e respiração, experimentando ainda variações, como vibratos, glissandos e “staccato”.

Na sequência desse estudo vocal, chegamos ao trato vocal (ressonância e articulação). Esses dois aspectos da produção vocal é especialmente importante para os atores, uma vez que estão relacionados à projeção vocal e à articulação das palavras, isto é, a dicção. Para Grotowsky, “atenção especial deve ser prestada ao poder da emissão da voz de modo que o espectador não apenas escute a voz do ator perfeitamente, mas seja penetrado por ela como se fosse estereofônica” (GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971).

Se compararmos nosso aparelho fonador com um violão, os dedos do músico representariam a coluna de ar, ou seja, o impulso mecânico capaz de fazer vibrar as cordas do instrumento, que representariam as pregas vocais. Outra parte importante do violão é a caixa de ressonância, capaz de amplificar o som produzido, aumentando sua intensidade. No corpo humano, o som é amplificado principalmente através da faringe, da boca e das fossas nasais, mas não se restringe a essas cavidades.

O corpo inteiro é nossa caixa de ressonância, ou, nas palavras de Grotowski, “(…) há um número quase infinito de caixas de ressonância, dependendo do controle que o ator exerce sobre seu instrumental físico. (…) A possibilidade mais frutífera está no uso de todo o corpo como caixa de ressonância. Isto é obtido pelo uso simultâneo das ressonância do peito e da cabeça” (GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971).

Além da ressonância, o trato vocal também propicia a articulação das palavras. Através dos articuladores (lábios, língua, lábios, dentes, palato duro, véu palatar e mandíbula) somos capazes de produzir sons, altamente especializados e “reproduzir – instantânea e exatamente – sentimentos delicadíssimos e quase intangíveis, com grande sensibilidade e o mais diretamente possível” (STANISLAVSKI, Constantin S. Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991).

Durante nosso estudo do trato vocal, exploramos os ressonadores e os articuladores, através de exercícios específicos. Experimentamos, por exemplo, o direcionamento do som para a cavidade nasal, promovendo, variações no timbre do som produzido, que podem ser muito úteis se utilizadas conscientemente na caracterização de personagens.

Já na modulação, experimentamos, por exemplo, o vocalize das vogais, seguindo o “triângulo vocálico”, isto é, a formatação da língua, da boca e do maxilar na produção das vogais, na seguinte sequência: iêéaóôu. Esse percurso parte das vogais produzidas na parte mais externa da boca (i, ê) passando pela parte central (é, a, ó), até a parte mais interna da boca (ô, u). Através do exercício do “triângulo vocálico”, podemos experimentar a vibração do som desde o palato duro, passando pelo céu da boca, até o palato mole.

Para muitos atores, os exercícios vocais são apenas destinados a cantores. Esses atores se contentam com os exercícios vocais básicos de aquecimento antes de entrar em cena, que viram em alguma oficina e apenas repetem porque alguém lhes disse que é benéfico. Mas a consciência e ampliação da disponibilidade vocal são benéficas para o ator de diferentes formas, pois propicia uma otimização dos seus recursos expressivos não só no momento de entrar em cena, mas também em longo prazo.

O objetivo desse relato é, antes de tudo, instigar o estudo do ator, sobre si mesmo, ampliando as suas possibilidades criativas. Realizamos esses exercícios dentro de uma agenda de estudos, mas vale frisar que, assim como qualquer outro trabalho muscular, os benefícios do treinamento vocal surgem com a continuidade e o aprofundamento.

Vale lembrar, no entanto, que existe outro aspecto da produção vocal que transcende os movimentos musculares, mas que ainda é o corpo em movimento. Estou falando da dimensão sensível envolvida no processo de comunicação humana, com seus aspectos simbólicos e poéticos.

Sonoramente, um espetáculo teatral é como uma sinfonia. Ele tem uma linha melódica, com harmonia e ritmo, som e silêncio, movimento e inatividadade. O ator é o principal instrumento dessa sinfonia e, ao mesmo tempo, o seu regente. Nessa sinfonia, percebemos diferentes timbres, intensidades, alturas e duração dos sons. Conforme ensina Stanislavski:

 

“A Fala é musica. O texto de um papel ou uma peça é uma melodia, uma opera ou uma sinfonia. A pronunciação no palco é uma arte tão difícil como cantar, exige treino e uma técnica raiando pela virtuosidade. Quando um ator de voz bem trabalhada e magnifica técnica vocal diz as palavras de seu papel, sou completamente transportado por sua suprema arte. Se ele for rítmico, sou involuntariamente envolvido pelo ritmo e tom de sua fala, ela me comove. Se ele próprio penetra fundo na alma das palavras do seu papel, carrega-me com ele aos lugares secretos da composição do dramaturgo, bem como aos da sua própria alma. Quando um ator acrescenta o vívido ornamento do som àquele conteúdo vivo das palavras, faz-me vislumbrar com uma visão interior as imagens que amoldou com sua própria imaginação criadora”

(STANISLAVSKI, Constantin S. A Construção da Personagem, 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.)