Postado em Pesquisa Teatral

Voz e Corpo

Voz é corpo. Costumamos pensar em voz como uma área separada, onde a garganta e as cordas vocais passarão por exercícios específicos que melhorarão seu uso. Mas, assim como a imagem do gesto viaja pela luz e entra pela retina do observador, os sons produzidos pelo corpo também são gestados dentro do corpo e emitidos para o exterior, e viajam através do ar, penetrando os ouvidos do ouvinte e chegando até seu cérebro, e até sua imaginação e memória. Muitas vezes, esses sons e gestos combinados, vividos pelos atores, provocam um campo vasto de sentidos e de experiências perceptivas. A imagem de um corpo e os sons que ele pode criar, sejam como for, dependendo das condições, de luz e/ou de efeitos, de vestimenta ou a falta dela, criam verdadeiros mundos interiores pra quem vê e ouve. Combinar de forma magistral composições corporais e sonoras têm uma força profunda em termos de comunicação. E quem sabe manejá-los (e em geral isso significa tê-los em si não apenas como uma mera repetição, mas como uma nova vivência a cada repetição) é capaz de tal poder de imaginação e sugestão, que pode levar uma plateia inteira a se sentir em marte, ou num quarto, ou no paraíso, ou no inferno, ou num ônibus…

Para o ator, é importante compreender a interligação de tudo que o corpo produz, e por mais que existam exercícios específicos para se desenvolver aspectos corporais, como a técnica vocal, importa perceber a unidade, o poder de radiância que essa orquestra maravilhosa é capaz de produzir. Em uníssono e com sentimento e inteligência, o bom ator vive com as pessoas que comunica. Portanto o grupo tem estudado aspectos intelectuais sobre o teatro, sua história, seu momento presente, sobre questões à respeito do futuro… Tem também feito um longo trabalho de estudo de coisas básicas de estímulo corporal, e agora chega ao aspecto do som corporal.

Atores têm que ter esse cuidado, o do examinar o suposto império da supremacia da palavra. Falar a palavra correta, com a intenção correta, pode ajudar o ator a revelar ou a velar o sentido das coisas que diz, que vive e que aparenta. Pode brincar com o malabarismo de mostrar e esconder. De revelar pelo que não diz, e de esconder no que diz, ou vice versa! Mas a palavra é apenas um dos meios.  O som de um rugido animalesco, os sons de uma gargalhada, de um suspiro ou de uma imprecação sem sentido podem ter muito mais sentido do que se dizer algo. Mesmo visualmente. Dizem que na Grécia antiga, as cenas de morte não eram mostradas (isso só veio com Roma e seu teatro de pão e circo). Assim, numa peça como Medéia, de Eurípedes, a cena da morte dos filhos de Medéia era velada. Ela entrava na casa e se ouviam os sons horríveis da matança. Não era preciso mostrar. E é muito bom pensarmos hoje no que mostrar ou não, e no quanto nós artistas contamos com a inteligência de quem vem nos assistir pra completar o sentido e criar a verdadeira experiência de comunhão teatral, todos juntos vivendo a “peça”.

Agora acompanhe o processo pelo qual produzimos sentido com um som.

A pessoa, qualquer que seja pensa numa coisa que queira. Daí o próprio fato de ela pensar numa coisa já é um mistério… E assim pela linguagem mental, por imagens ou por seu idioma, cria uma forma mental do que quer dizer. Daí isso se transforma em uma frase ou palavra. A partir deste ponto entram em ação vários mecanismos corporais que ativam aspectos emocionais, psicológicos e físicos, dependendo da intenção por trás do que se quer dizer. Assim a respiração se prepara, e diversos grupos musculares envolvidos ficam a postos. O ar entra em você, e passa a sair pressionado por esses grupos musculares (o corpo todo está atento), e passa pelas pregas vocais criando uma vibração sonora que continua a subir pelo corpo, reverberando nele todo, e por fim se modula na cabeça, onde pode ser trabalhado, burilado até tomar a forma que se queira. Então na última etapa, pela dicção, a forma como ecoou dentro da boca, da caixa nasal, dos ossos da cabeça e dos seios nasais, sai pela boca em forma de um som específico. Supondo que a “coisa”, o pensamento escolhido foi a palavra “casa”. Depois de tudo isso, o som da palavra casa entra no mundo tridimensional e viaja pelo ar, em ondas, que simplesmente voam invisíveis. Assim, até certa distância, quem estiver ali receberá, em maior ou menor grau, aquele som viajando pelo espaço, que entrará pelo seu tímpano, pelos ouvidos, e de lá será conduzido até o cérebro, que interpretará o som e trará, do fundo do arcabouço da sua memória, a imagem correspondente, e você então entenderá: casa! Não é incrível isso minha gente?

Achamos comum porque o fazemos todos os dias como a coisa mais corriqueira e banal do mundo, mas não é.

Nesta etapa, enfim, apliquei um estudo de técnica vocal com os atores, como aquelas aulas de canto mesmo, para um estudo revisitando nosso aparelho respiratório, musculaturas envolvidas na produção de som, caixas sonoras e de reverberação, modulação sonora e dicção. Estudei canto erudito por 6 anos com diversas pessoas e grupos, e isso me forneceu o estofo para poder experimentar aplicações de exercícios. Mas lembro que esta parte, a despeito de muito útil, não pode encerrar-se em si mesma. A transferência destas capacidades para um uso mais sensível e abstrato também importa muito. Fizemos alguns laboratórios, apenas como indicadores de que a qualidade da utilização artística desses elementos está atrelada a superação (ou, no mínimo, o uso consciente), daquilo que chamamos de “técnico”. Fizemos também mais um período de trabalho corporal, adentrando este mesmo espaço mais abstrato, mas sedimentado nas etapas pregressas, em que o corpo, para além das técnicas de preparação e movimento, começa a se projetar no espaço de forma mais poética.

Como eu já descrevi em outros pontos desta pesquisa acredito que uma arte que se exima da realidade de que caminhamos até aqui vindos de ritos de celebração a natureza e a vida, de que a emoção e o envolvimento do artista com o que produz, tornando a obra sua “voz”, isso acho muito importante, sobretudo num momento do mundo tão despersonalizado, em termos de criação. Não me refiro aqui a procurarmos ser a crista da onda Avant Garde das artes (risos). Porque originalidade pode estar presente nas maiores repetições daquilo que já foi feito. Mas me refiro a uma integralidade do ser que cria em comunhão com o que quer dizer, com o que comunica. Por isso também é importante entender esta integralidade naquilo que fazemos, com todo o nosso corpo envolvido. Assim, “voz”, “corpo”, “alongamento”, “pensamento” serão apenas momentos de foco naquilo mesmo que é a massa primeira do nosso trabalho, nós mesmos, e que engloba todas estas coisas e muito, muito mais.

 

Agora vou colocar aqui alguns vídeos demonstrando alguns dos exercícios tratados neste período.

 

Nestes primeiros 5 vídeos, o grupo experimenta numa aula aspectos importantes do estudo de elementos componentes do trabalho vocal. Respiração, Manutenção do ar e da pressão aérea interna, emissão de ar e de som, Direcionamento do som produzido nas caixas de ressonância do corpo e modulação sonora e dicção.

Nesta outra aula, também explicações e exercícios que englobam a ativação dos musculos envolvidos na manutenção da respiração e sustentação de emissão de ar, e avançando progressivamente para etapas de modulação e solfejo.

Como explicado, temos esse trabalho de base que é perceber a própria respiração, estudar as áreas do corpo envolvidas nesse processo, explorar os modos dela (no nosso caso vimos as intercostais, diafragmática e peitoral). Depois de entendido isto, vem a prática de uso consciente desta estrutura para se criar o controle de pressão  interna e emissão de ar, liberando as pregas vocais de tensões que geralmente se lhe aplicam quando não se tem domínio da estrutura de base ( o que causa muitas dificuldades, e até enfermidades, como os nódulos vocais). Na etapa seguinte, conhecendo melhor sua própria estutura e manipulando ativamente, aprende-se a praticar a afinação, ouvindo o próprio timbre, estudando sua própria escala vocal, e brincando tb, de experimentar subir e descer nesta escala, lidando com as pressões envolvidas, aprendendo com o próprio corpo e ensinando o próprio corpo. Daí vem a etapa da experimentação das caixas de ressonância, da modulação do som e da dicção. Enfim, é um continuum de auto-trabalho que leva tempo para se dominar.

Depois vem esta etapa de transposição, da técnica para a abstração, usando toda a estrutura e o conhecimento adquirido. Fizemos isso em leituras mas aqui fizemos em laboratórios, onde o som foi produzido pelos atores, puxados por certos estímulos, e a percepção do grande alcance de relação entre interior e exterior, entre criação visual e sonora com geração de sentido foi muito importante pra cada um.

Nas páginas dos atores tb temos mais vídeos de exercícios de voz e corpo desta que foi a etapa final de trabalho com exercícios desta ordem. Agora vem no projeto a etapa da montagem das cenas individuais, que envolve o material estudado até aqui e se direciona para uma montagem simples de uma cena simples. Cada ator tem que montar uma cena, do seu interesse, e deve apresentar duas montagens do mesmo trabalho, com viés diferente entre as duas. Para mostrar que os caminhos são múltiplos e que o exercício e apenas a porta de entrada para a criação como um todo. Tendo esta base, todos estão se sentindo mais confortáveis na própria pele (risos). Serão formadas duplas também, e cada um será dirigido pelo colega em sua própria cena, para levantar esta discussão do papel do ator e do diretor um frente ao outro : ) Vejamos no que deu, na próxima publicação. Abraços!